Era do rádio se eterniza em <i>Alô Alô Carnaval</i>

Documento histórico da música brasileira, filme de 1936 com Francisco Alves, Carmen Miranda e Mario Reis é restaurado

Julio Moura
13/09/2001
Quando o filme Alô Alô Carnaval foi produzido, em fins de 1935, os estúdios da Cinédia - em São Cristóvão, Estado do Rio - pareciam uma filial carioca de Hollywood. Durante os dois meses de filmagem, o bairro assistia a um desfile contínuo de astros do teatro e do rádio, nas gravações do filme dirigido por Adhemar Gonzaga. Afinal, não era qualquer evento que reunia, de uma só tacada, Carmen e Aurora Miranda, Mario Reis, Francisco Alves, Almirante, Lamartine Babo, Dircinha Baptista e o Bando da Lua, lado a lado com os comediantes Oscarito e Jayme Costa.

Como parte das comemorações pelo centenário de seu fundador Adhemar Gonzaga, a Cinédia prepara o relançamento da película, restaurada com o patrocínio da Distribuidora BR. Segundo a filha de Adhemar, Alice Gonzaga, atual diretora da Cinédia, a nova cópia será exibida no próximo Festival do Rio, que começa dia 27 de setembro, e deve ganhar versão em DVD.

"Alô Alô Carnaval inaugurou a modernidade no cinema brasileiro. A idéia era apresentar os cantores, num tempo em que a TV não existia. O grande público não tinha acesso aos cassinos. Ouvia no rádio, mas não conhecia os artistas. Daí o sucesso do filme", associa Alice Gonzaga.

De fato, o caráter "de revista" adotado em Alô Alô Carnaval já seria o suficiente para incluí-lo entre os precursores da chanchada, cuja popularidade se intensificaria a partir da década seguinte. As câmeras permaneciam paradas enquanto os artistas dublavam as canções. O argumento ingênuo, de Braguinha e Alberto Ribeiro, a partir de uma idéia do produtor americano Wallace Downey, era talhado para conquistar os fãs pouco exigentes dos programas de auditório: dois revistógrafos (Barbosa Júnior e Pinto Filho) tentam convencer um empresário (Jayme Costa), dono do Cassino Mosca Azul, a patrocinar o espetáculo Banana da Terra. O empresário a princípio esnoba, preferindo programar uma atração européia. Diante do "bolo" deixado pelos gringos, a solução é contratar a revista. É a senha para o desfile de estrelas do incipiente showbizz brasileiro. A MTV dos tempos do gramofone.

A cena de Carmen e Aurora Miranda traz a imagem pré-hollywoodiana mais famosa da pequena notável. As irmãs interpretam a marcha Cantores do Rádio, trajadas com camisas listradas ao estilo malandro e escandalosas calças colantes. Lançada no filme e gravada em março de 1936, Cantores do Rádio seria um dos maiores sucessos do repertório de Carmen. Na década de 70, a marcha fez parte da trilha de outro filme, Quando o Carnaval Chegar, de Carlos Diegues, interpretada por Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão.

Segundo o pesquisador Suetônio Soares Valença, a música foi composta por Lamartine, Braguinha e Alberto Ribeiro dentro de um ônibus, depois de uma noitada em que os três haviam perdido todo o dinheiro apostado no Cassino da Urca. Entusiasmado com a canção concebida no banco de trás do lotação, o trocador teria dispensado-os dos vinténs da passagem.

Lamartine, em carne e osso (mais osso do que carne, como ele gostava de repetir) protagonizava, em dupla com Almirante, As Armas e os Barões, uma autêntica gozação lamartinesca pra cima dos Lusíadas, de Luís de Camões: "As armas e os barões assinalados / vieram assistir ao carnaval./ cantando espalharei por toda a parte que o porta-estandarte vai ser seu Cabral". A performance de Dircinha Baptista, aos 14 anos, era de tirar o sono do avô do Siro Darlan, especialmente em Pirata da Areia, na qual a cantora favorita de Getúlio aparecia sensualmente vestida de bucaneira, e Muito Riso, Pouco Siso.

Luís Barbosa – o único mulato do elenco - antecipa o samba-de-breque, introduzindo o chapéu de palha na música brasileira. No saudoso verão de 36, Francisco Alves era possivelmente o cantor mais popular do casting de Alô Alô Carnaval. O Rei da Voz exibe a potência de seu dó-de-peito em Amei e Comprei uma Fantasia de Pierrô e, de quebra, dubla em falsete o ator Jayme Costa numa hilária paródia de Sonhos de Amor, de Lizst. No livro Mario Reis – o Fino do Samba, o jornalista Luís Antonio Giron narra um episódio curioso a respeito de Cadê Mimi, outra marcha de Braguinha, cantada no filme por Mario. Diz Giron que "de acordo com Adhemar Gonzaga, Mario desistiu de cantar Cadê Mimi logo depois do lançamento do filme. Segundo o cineasta, Mario, durante um espetáculo, cantou a música diante de uma platéia agitada e gozadora. Toda vez que Mario cantava o estribilho: "Cadê Mimi", o público respondia: "foi fazer xixi!". Mario ficou furibundo". O extravagante cantor, bem ao seu estilo, preferiu manter-se alheio a toda a publicidade do filme e sequer compareceu à estréia no Cine Alhambra. "Mario Reis não se mistura", conformavam-se os colegas, em indignação reverente.

Mas a grande polêmica de Alô Alô Carnaval culminou no cancelamento da participação de Aracy de Almeida. Por sugestão de Noel Rosa, Gonzaga concebeu uma cena onde Aracy aparecia vestida de lavadeira, cantando Palpite Infeliz, sucesso de Noel. A cantora chegou a comparecer aos estúdios de São Cristóvão, mas abandonou o set diante da gozação de alguns colegas, entre eles Francisco Alves. "Todo mundo aí bem vestido, eu é que não vou posar de maltrapilha", esbravejou Aracy. Na ausência de sua intérprete favorita, Noel teve de se contentar com as interpretações de Joel e Gaúcho para Pierrô Apaixonado e do Bando da Lua, em Não Resta a Menor Dúvida. "Sem querer, Noel me sacaneou", relevaria Aracy no fim da vida.

Em 1974, um trabalho de recuperação menos cuidadoso que o de agora trouxe Alô Alô Carnaval de volta ao circuito. Na época, o jornalista Nelson Motta recomendou-o à turma da contracultura como "a verdadeira semente das comédias musicais brasileiras". O velho Adhemar não parecia tão convicto: "O público de hoje não verá parte dos números humorísticos. Sem que eu participasse, fizeram uma remontagem", reclamou.

Os negativos conseguiram escapar do melancólico destino de outras duas produções protagonizadas por artistas do rádio, Estudantes e Alô Alô Brasil, cujos originais acabaram literalmente reduzidos a pó. O que resta de imagens dos primórdios da era do rádio – além de O Cantor de Samba, com registros de Noel Rosa – tem sua posteridade garantida nos 78 minutos pioneiros de Alô Alô Carnaval.