Estabilidade e ocaso

Má administração da carreira fez com que Clementina se apresentasse em barzinhos aos 86 anos

Nana Vaz de Castro
06/02/2001
Na década de 70 a carreira de Clementina ainda se manteve em ascensão. Gravou seu segundo disco solo, Marinheiro Só ouvir 30s, em 1973, com direito a uma notável participação do percussionista Naná Vasconcellos numa série de cinco cantos religiosos. Entre 71 e 74, participou, mais ou menos regularmente, do show Noitadas de Samba, que ficou, no total, onze anos em cartaz no Teatro Opinião. Era mais uma fonte de renda para a cantora, que precisava fazer shows para pagar o aluguel de sua modesta casa de três cômodos no subúrbio. O elenco fixo das Noitadas foi, por um bom tempo, composto por Clementina, Cartola, Nelson Cavaquinho, Xangô da Mangueira, Dona Ivone Lara, Baianinha e o Conjunto Nosso Samba, sempre com convidados. Em 78, ela participou do Projeto Pixinguinha, viajando pelo Nordeste e Norte do Brasil.

Mas, com mais de 70 anos de idade, a saúde já dava sinais de fraqueza. Em 1973, antes da gravação de Marinheiro Só, teve uma trombose que deixou algumas seqüelas. Além disso, o marido Pé Grande teve um derrame que o deixou de cama por quatro anos, e durante todo o tempo Clementina esteve por perto, ajudando o companheiro, que morreu em 1977. Quando gravou Clementina e Convidados ouvir 30s, em 1979, já estava no patamar de mito da música brasileira, sendo reverenciada e homenageada, mas mesmo assim precisando fazer shows para pagar o aluguel.

Em 80 trocou a casa de porta verde e paredes rosa (cores da escola de coração) do Engenho Novo por outra em Inhaúma, conseguida por intermédio da Funarte e do Banerj, que ficou em nome da Casa dos Artistas, com usufruto de Clementina enquanto vivesse. Livrou-se da praga do aluguel, mas continuou tendo que se sustentar, pois não podia viver apenas com a pensão do marido e da aposentadoria, que conseguiu em 1970 graças à iniciativa de Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Luís Sérgio Bilheri Nogueira. Os três destinaram parte do prêmio ganho em um festival de música ao pagamento retroativo das contribuições de Clementina, que conseguiu assim se aposentar como doméstica.

A década de 80 foi difícil para Clementina, uma senhora simples que em suas entrevistas confessava sem problemas suas preferências musicais por Sidney Magal e pelo programa dominical de Silvio Santos. Já octogenária, continuava fazendo shows em locais nem sempre condizentes com seu talento e sua condição física. Seu descobridor, Hermínio Bello de Carvalho, mostrava indignação com os rumos tomados pela carreira da cantora, exposta à ganância de produtores e empresários.

Homenagens não faltaram, mas o dinheiro não foi tão abundante. Em 83, uma grande festa em reverência a Clementina foi feita no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sem outro motivo concreto que não a simples vontade de prestar-lhe uma bela homenagem em vida. No começo daquele ano, ela tivera mais um derrame, mas se recuperou. Elizeth Cardoso, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, João Nogueira e Nelson Cavaquinho foram alguns dos presentes na cerimônia do Municipal, que levou ainda um casal de porta-bandeira e mestre-sala e um grupo de baianas ao palco mais tradicional do país.

A vida na TV
No ano seguinte, ela foi tema de um Caso Especial, programa produzido na época pela TV Globo que levava ao ar toda semana uma história contada em cinco capítulos, de segunda a sexta, às 17h. Clementina participou atuando, no papel de sua avó Mina. Dona Ivone Lara, estreando como atriz, fez o papel de Quelé. Roberto Bonfim era Hermínio.

Nessa época Clementina foi assunto de diversas reportagens que denunciavam justamente o descaso e a situação em que se encontrava. Mas mesmo assim, ela teve de continuar cantando na noite principalmente paulistana e carioca. Até show de campanha fez, em 1985, para o candidato à prefeitura de São Paulo Fernando Henrique Cardoso, que acabou perdendo a eleição para Jânio Quadros.

Elton Medeiros tem uma lembrança melancólica desse tempo: "Uma vez a encontrei - se não me engano foi a última vez que falei com ela - na coxia de um show, eu estava saindo do palco e ela entrando. Ela me disse: ‘Não sei por que eles me botam pra cantar, eu não quero mais cantar’. Eu respondi: ‘Mãe, infelizmente eu não posso fazer nada’, e aquilo me marcou muito. Não sei quem eram ‘eles’, mas ela não tinha controle sobre a própria carreira. Ela estava tocando com um grupo de samba paulista". O último show de Clementina foi no restaurante Chopp’s, no bairro do Méier, no Rio, em maio de 87, três meses antes de morrer.

Em 19 de julho de 87, Clementina não resistiu ao quinto derrame. Seu velório, no Teatro João Caetano, chamou a atenção pela modéstia na presença de artistas. Segundo os jornais da época, estavam lá Paulinho da Viola, Xangô da Mangueira, Dona Zica e, claro, Hermínio Bello de Carvalho, que na ocasião não deu depoimentos à imprensa, distribuindo apenas um artigo-manifesto. João Bosco, Elton Medeiros, João Nogueira e Elymar Santos apareceram mais tarde no cemitério.



Leia ainda sobre Clementina: