Flores em vida para Guilherme de Brito

Co-autor de clássicos como A Flor e o Espinho, o sambista estrela curta-metragem sobre sua vida

Julio Moura
12/07/2001
Depois de revelar seu Samba Guardado - título do ótimo CD lançado recentemente pela Lua Discos - chegou a vez de Guilherme de Brito mostrar sua verve cinematográfica. No caso, fazendo o papel dele mesmo. A exemplo dos documentários sobre Nelson Sargento (de Estevão Pantoja), Cartola (Chega de Demanda, de Roberto Moura) e Nelson Cavaquinho (de Leon Hirzsman), mais um sambista é retratado em película, ganhando, segundo os versos do próprio Guilherme, as flores em vida. O curta-metragem A Flor e o Espinho, dirigido por André Sampaio, encontra-se em fase de finalização, e deve chegar às telas até o final do ano. Resta saber, segundo o diretor, a que telas.

"Passamos dois anos tentando produzir este curta. Quando o Guilherme já não aguentava mais esperar condições financeiras para filmá-lo, resolvemos iniciar as gravações. Rodamos tudo em dois meses. Penso em fazer uma versão mais longa, para TV. As possibilidades de um curta ser exibido no cinema são sempre reduzidas", conforma-se Sampaio, 26 anos, cuja estréia cinematográfica também remetia ao mundo do samba. Seu primeiro filme, Polêmica(1998), ambienta-se na disputa musical protagonizada por Noel Rosa e Wilson Baptista.

Um dos momentos mais marcantes do curta é a recepção preparada para Guilherme de Brito em Conservatória, onde foi inaugurado um museu em homenagem ao sambista. O poeta percorre, sem pranto, as ruas da pequena cidade do interior do estado do Rio, acompanhado pelos seresteiros locais, numa espécie de procissão que inclui até canções de Roberto Carlos. Os clássicos de Guilherme - A Flor e o Espinho, Folhas Secas, Quando Eu Me Chamar Saudade, Pranto de Poeta, Degraus da Vida , todas em parceria com Nelson Cavaquinho - reaparecem ainda no Candongueiro, templo do samba localizado no bairro de Pendotiba, Niterói. Na praia de Itacoatiara, o compositor de 79 anos (nascido em 3 de janeiro de 1922), relembra seu encontro com o eterno parceiro:

"Eu saía do trabalho (na Casa Edison, onde começou como boy e chegou a chefe do setor de máquinas de calcular) e ia para a Praça Tiradentes, ao ponto de compositores em frente ao Teatro Carlos Gomes. Havia um botequim, desses botequins fedorentos, onde entravam aquelas prostitutas de última classe. Ali, encontrava o Nelson tomando cerveja preta. Geralmente era eu quem pagava, pois o Nelson estava sempre duro. Chamávamos o lugar de Cabaré dos Bandidos", diverte-se Guilherme.

Outro depoimento precioso detalha a criação da música que dá nome ao curta, A Flor e o Espinho, obra emblemática da parceria Nelson-Guilherme:

"Eu fiz a primeira parte deste samba quando vinha de Niterói com o (cantor) Augusto Calheiros. Eu não tinha papel. Veio aquela inspiração, desmanchei o maço de cigarros, pedi a caneta ao garçom e escrevi: "Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor/ hoje pra você eu sou espinho / espinho não machuca a flor". Ele (Nelson) fez a segunda parte: "É no espelho que eu vejo a minha mágoa / a minha dor e os meus olhos rasos d’água. Eu, na sua vida, já fui uma flor / hoje sou espinho em seu amor".

Da Vila Isabel, onde nasceu, à Vila da Penha, onde passou a maior parte de sua vida, e Bonsucesso, onde vive hoje, ao lado da mulher, D. Nena ("Moro na Praça das Nações, entre as ruas Bruxelas e Nova York", orgulha-se), Guilherme tem passagens e lembranças por quase todos os bairros boêmios do Rio. Foi na Vila Isabel que o menino Guilherme conheceu o poeta que mais o influenciou. Foi na Vila, também, nas calçadas da vetusta Dona Carlota, onde despertou para outra de suas preferências artísticas, a pintura:

"Eu comecei garoto, sempre desenhava, gostava de aparecer. Não podia ver um carvão que sempre tinha de desenhar alguma coisa. Lá em Vila Isabel, paralelo ao violão e ao cavaquinho, que eu sempre ia tocar ccom meus amigos, eu tinha sempre um carvão no bolso. Calça curta, eu desenhava nas ruas de lá, na calçada da Dona Carlota. O pessoal gostava, mas Dona Carlota ficava pau da vida. Eu vivia naquele clima de Noel Rosa, passava num botequim e via Noel Rosa tocando com os amigos dele. Então, eu tinha vontade de tocar também. Fui cantando, ia vivendo, desenhando", lembra o compositor.

Guilherme finalmente parece ter superado a sina de ser "o parceiro de Nelson Cavaquinho" para tornar-se, ele próprio, uma lenda viva e ativa da música brasileira. Figura de carisma ímpar e dono de uma mística toda particular, Nelson acabou - sem querer - ofuscando a existência do parceiro ao longo dos anos. O elegante estilista dos versos, discreto e introspectivo, às vezes nem é lembrado pelos muitos que reverenciam os clássicos legados pela dupla.

No Japão, muitos, pelas mãos do produtor Katsunori Tanaka, já reverenciavam Guilherme de Brito com a estatura que ele merece. As imagens de A flor e o Espinho e as faixas de Samba Guardado revelam também um intérprete afinado, na escola seresteira de Orlando Silva e Sílvio Caldas. A curta trajetória discográfica (só possui quatro álbuns solo, todos gravados a partir de 1980) não reflete a obra de um compositor que tem pelo menos 45 anos de carreira, desde os tempos em que batia à porta da Rádio Nacional (nos anos 50) para divulgar suas músicas.

Desde o tempo do Cabaré dos Bandidos, Guilherme de Brito Bollhorst resignou-se como um Erasmo à sombra de um "Rei vadio". Mais do que nunca, é hora de receber as flores em vida. "Este filme é o lado B do Nelson Cavaquinho de Leon Hirzsman", resume o diretor André Sampaio, referindo-se ao filme rodado em 1970 sobre o parceiro de Britto. "Guilherme era o verdadeiro underground da dupla", conclui Sampaio.