Francis Hime em bela noite de homenagem ao Rio

Compositor lota o Theatro Municipal com sua Sinfonia do Rio de Janeiro, promovendo feliz encontro entre o popular e o erudito. Solistas brilharam apesar das dificuldades da partitura

Nana Vaz de Castro
01/12/2000
Vips de todas as esferas da cultura lotaram as frisas, camarotes, galerias e platéia do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na quinta-feira à noite, para ouvir a Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião, composta por Francis Hime, com letras de Geraldinho Carneiro e Paulo César Pinheiro.

Em apresentação única - que foi gravada e vai virar disco - subiram ao palco nada menos que 70 músicos (entre orquestra sinfônica, coro e conjunto regional), sem contar os cinco solistas (Zé Renato, Lenine, Leila Pinheiro, Olivia Hime e Sergio Santos) e o regente (o próprio Francis). Antes do início da peça, o pesquisador, produtor e idealizador da Sinfonia, Ricardo Cravo Albin, foi ao microfone falar sobre o Rio de Janeiro e dedicar a noite aos compositores da primeira sinfonia dedicada à cidade, escrita em 1954: Tom Jobim e Billy Blanco (que estava presente na noite). O caráter oficial da cerimônia continuou, com breves pronunciamentos do secretário estadual de cultura, Adriano de Aquino, e do deputado Sérgio Cabral Filho, representando o governo do estado, que encomendou a peça.

Tema inesquecível e solos complicados
Orquestra e solistas a postos, o último a entrar é o maestro, debaixo de calorosas palmas. A Sinfonia começa com um susto, um tutti da orquestra com todos os solistas, marcado pelo poder da numerosa percussão. A apresentação dos dois temas principais - um mais lírico, outro mais batucada -, que pontuariam toda a peça, é feita pelo coro. Funcionou. Na melhor tradição da ópera italiana e das trilhas sonoras walt-disneyianas, o público saiu do teatro cantarolando a melodia principal.

Os movimentos foram divididos tematicamente de acordo com a história da música brasileira. Lenine esteve bem à vontade cantando o Lundu, cheio de síncopes e divisões quebradas, remetendo ao Brasil Colônia. Elegante, vestindo camisa roxa sob blaser preto e calçando sandálias, nem mesmo o sotaque pernambucano foi empecilho para sua boa performance, muito dançante e gingada.

Sem interrupção entre os movimentos - apenas uma citação ao tema feita pela orquestra e pelo coro -, saiu Lenine por um lado, entrou Zé Renato pelo outro, para um dos momentos de maior emoção da noite. O solo do movimento Modinha, representação do Rio de Janeiro imperial, era de uma dificuldade extrema. A melodia rebuscada e sinuosa, que ia de graves a agudíssimos muito rapidamente, deixou a platéia suspensa e emocionada com a bravura do ex-Boca Livre, que deu conta do recado mostrando mais uma vez toda sua versatilidade e competência como cantor. Apenas uma leve e quase imperceptível escorregadela em uma nota muito aguda, que em nada desmereceu sua apresentação, coroada com longos aplausos.

Ao que parece, Francis Hime escreve para vozes como escreve para instrumentos, sem se importar muito com a dificuldade que os grandes saltos criam para os cantores. Depois de Zé Renato, isso ficou patente mais uma vez no terceiro solo da noite, de Leila Pinheiro. Vestindo um estranho capote de couro preto sobre calça de estampa de zebra verde e preta, Leila deu um show à parte cantando o Choro. A complicação da linha melódica e a ótima letra, com milhares de palavras por compasso, faziam da música uma tarefa digna de Ademilde Fonseca, a rainha do chorinho, em seu auge. Mas Leila, talvez por ter cantado tanta letra de Aldir Blanc, mostrou uma categoria ímpar. Ela levantou a platéia ao falar de figuras que iam desde Nazareth, Callado, Chiquinha e Luiz Americano até Galo Preto, Nó em Pingo D’Água e Os Carioquinhas, ainda citando todos os lugares no Rio onde ainda resistem as rodas de choro.

Depois de Leila, qualquer um que entrasse já estaria em desvantagem. A falta de sorte veio para Olivia Hime, que cantou Samba. A escolha do tema também trabalhou contra Olivia, intérprete habitual de suaves canções, que, com sua natural elegância aristocrática, não combinou com os versos que falavam do terreiro da Tia Ciata, dos bairros do Estácio, Gamboa, Pavuna, da águia da Portela ou da corte do rei Nagô. Uma cantora mais ligada ao samba, como Elza Soares ou Beth Carvalho, talvez se sentisse mais à vontade naquele ambiente de solos de cuíca e muita batucada.

Sergio Santos, o menos conhecido dos solistas, entrou para o último movimento, Canção Brasileira, enfocando principalmente a bossa nova e explorando o estilo bon vivant carioca. Santos não se intimidou com o tamanho do teatro e da platéia, e brindou a todos com uma linda voz e interpretação fina, no mesmo nível dos demais, apesar da letra menos inspirada da parte que lhe coube e de uma pequena falha vocal em um trecho especialmente difícil.

O que aparecia como uma incógnita para grande parte do público acabou se revelando uma ótima surpresa antes do encerramento, com a volta Zé Renato em um dueto com Santos, e mais tarde, a de todos os outros solistas, que finalizaram o show cantando "Ninguém me tira daqui/ Paraíso é aqui/ O inferno é aqui/ Purgatório é aqui/ O barato é aqui/ A loucura é aqui/ A paixão é aqui". O clima era de êxtase, que talvez tenha contagiado até os contra-regras. No fim, não se sabe se por indicação de cena ou sem querer, subiu o último cenário, deixando à mostra a área de serviço do teatro, com escadas, extintores de incêndio, cortinas caídas… Mas aí tudo já era festa e aplauso, apesar da chuva grossa que castigava a cidade.

Batuqueiros de fraque
A parte instrumental desempenhou muito bem seu papel, engrandecendo o espetáculo com brilho e vigor. O naipe da percussão, que incluía feras como Wilson das Neves, Tutti Moreno e Jorginho do Pandeiro, teve destacada importância durante toda a peça, remetendo a uma tradição orquestral brasileira de Villa-Lobos e Radamés Gnattali. Resultou feliz a idéia de Francis de privilegiar certos naipes de acordo com os movimentos: mais cordas na Modinha, mais madeiras no Choro, mais percussão no Samba e Lundu.

O regente Francis começou bastante preso aos modelos de regência, parecendo querer carregar toda a orquestra nas costas, mas rapidamente se soltou das amarras da tensão natural e conseguiu fazer a peça fluir, sem deixar de lado a precisão na condução. O compositor Francis foi, sem dúvida, muito bem-sucedido na espinhosa tarefa que lhe coube, utilizando com equilíbrio as múltiplas possibilidades da orquestra, do coro, do regional (este, o menos aproveitado) e dos solistas (estes, exigidos em grau máximo). E, muito sagaz, não espichou a peça mais do que necessário. Em cerca de 45 minutos muito dinâmicos, tudo estava encerrado.

Os pontos negativos foram poucos. Primeiro, o sistema de amplificação das vozes, que privilegiou os espectadores sentados na platéia em detrimento dos que galgaram balcões e galerias. Segundo, e mais grave, o fato de ter sido apresentação única. Um evento como este merecia uma longa temporada a preços populares.