Gabriel o Pensador encara o mar de lama brasileiro

Novo disco do rapper mira na corrupção e no conformismo

Paulo Vasconcellos
25/05/2001
Gabriel o Pensador não quer só cantar (e pensar). Quer protestar e mobilizar as pessoas também. Por causa disso, Seja Você Mesmo Mas Não Seja Sempre o Mesmo amostras de 30s- quinto álbum de sua carreira, iniciada há oito anos - acabou se transformando num disco temático contra a corrupção, a violência policial, a injustiça e o conformismo da população. "Estou realmente obcecado em fazer as pesssoas pensarem, protestarem e quererem mudar isso que está aí. A gente sempre acha que chegou a uma situação limite e que está na hora de mudar tudo, aí as coisas sempre ficam piores. Mas acho que desta vez está demais. Não dá para continuar" discursa Gabriel, referindo-se ao mar de lama de escândalos do dia-a-dia brasileiro.

De fato, a palavra-chave do disco de Gabriel é o inconformismo. Na música de trabalho, Até Quando, o rapper questiona o quanto mais de sofrimento o povo brasileiro vai aguentar sem tomar providências. "Nessa música eu espeto o ouvinte mesmo. Pergunto: 'Até quando você vai levando porrada, até quando vai ficar sem fazer nada, até quando vai ser saco de pancada', provoca Gabriel. E ele continua: "As pessoas estão muito frias, insensíveis diante da realidade. Pode parecer incrível, mas os escândalos e as tragédias não provocam mais nenhuma comoção. O pobre não se mexe porque é alienado e mal-informado. E o rico fica na dele porque é egoísta", ataca.

Em outra canção do novo disco, Brasa, composta em parceria com Lenine, Gabriel vive a experiência de quem vê o Brasil de fora e sente saudade. E também questiona o outro lado: o de quem volta e fica com vergonha de tudo de ruim que percebe na realidade nacional. "A música é dividida em duas partes, com as citações de saudade da primeira sendo substituídas por outras de vergonha na segunda. Nessa música eu e Lenine acabamos fazendo tudo juntos. Ele gostou muito da idéia, mexeu na letra e ajudou na melodia. Ele é um cara que vive fazendo turnês fora do Brasil, passa às dois, três meses no exterior. Por isso, entende exatamente os sentimentos que tentei exprimir nessa música", conta Gabriel.

O tom de revolta do disco sobe ainda mais quando Gabriel canta Pega Ladrão. Com uma frase-citação no início da música ("Eu não vi essa lista, eu afirmo com a mais absoluta certeza e sinceridade que nunca vi essa lista", extraída do tristemente célebre discurso do senador José Roberto Arruda), a música é a mais urgente e atual do álbum. Dá até a impressão de que o disco foi finalizado "na correria", junto com a recente onda de escândalos no Congresso, pela referência ao (agora) ex-senador Arruda no caso da violação do painel do Senado. "Essa música ia sair do disco. Pega Ladrão tinha um outra letra. Mas eu simplesmente não podia ficar calado diante de tudo isso que está acontecendo, e ainda havia tempo para dizer alguma coisa. Escrevi a letra baseada nesse rolo político todo e gostei do resultado. Acabei colocando a letra nova e as citações dois dias antes da mixagem final", lembra Gabriel.

A força ideológica das letras do álbum contrasta com o clima mais descontraído de Nádegas a Declarar, o disco anterior do Pensador (lançado em 1999), que era puxado pela irônica Cachorrada. A diferença é gritante até mesmo nas capas dos CDs: Nádegas... mostrava Gabriel em meio a dezenas de "popozudas" desnudas. Em Seja Você Mesmo..., para ilustrar o título, foi usada uma foto quase cândida: um Gabriel bem mais jovem, com uniforme escolar do ensino fundamental. "Sempre tive um lado irreverente e outro mais politizado. Às vezes um dos lados está mais em evidência, depende da realidade que estou vivendo. Mas nunca deixei de combinar as duas vertentes: o bom-humor e a tentativa de conscientização", fala o rapper.

Mas se a tônica do disco é protesto e reclamação, também há espaço para a esperança. Em Mário, Gabriel conta a história de um garoto pobre que virou líder comunitário e "deixou de ser otário", passando a lutar por seus direitos e a enfrentar os poderosos como um representante do povo. Gabriel também incluiu no disco a canção Ah, mais uma conclamação para que o povo "acorde", afinal. "É uma música sobre alienação. Acho que somente a população tem em suas mãos a força de mudar o estado de coisas. A música é um veículo importantíssimo de  conscientização das pessoas. Se eu tiver conseguido passar para alguns o meu exemplo, já fico satisfeito", conclui Gabriel.

Como no disco anterior (e em todos os outros) o Pensador cercou-se de amigos bem especiais. Liminha dá conta de múltiplos instrumentos, co-assina três canções e divide a produção com Itaal Shur e Chico Neves. Gabriel é só elogios: "É cada vez melhor trabalhar com ele. A dedicação do Liminha é incrível, acima de tudo ele é um grande amante da música". Gente como Digão (dos Raimundos), Gustavo Corsi (ex-guitarrista dos Picassos Falsos) e Bacalhau (do Rumbora) também dá as caras.