Genioso e genial, Guinga é retratado em livro

Os Mais Belos Acordes do Subúrbio conta em tom jornalístico a vida e obra do compositor e violonista carioca

Marco Antonio Barbosa
15/06/2002
Ele é a personificação carioca daquilo que os americanos gostam de chamar de a musician's musician, ou seja, um músico dos (e para) os músicos. Mas restringir o status de Carlos Althier de Souza Lemos Escobar - Guinga - dentro da MPB ao de um mero virtuose instrumental seria no mínimo uma simplificação grosseira. Guinga é, para definí-lo melhor, um dos mais bem guardados "segredos" de nossa música, compositor e violonista reverenciado por dez entre dez medalhões da MPB, parceiro de Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Chico Buarque - mas que permanece fora dos olhares do grande público. Entre as inúmeras razões que o mantêm neste (confortável) semi-anonimato, está a própria personalidade do compositor. Retraído, com fama de autor "rebuscado demais", cheio de idiossincrasias e devidamente não talhado para a superexposição, Guinga tem a complexidade de sua vida e obra esboçadas pela primeira vez em livro, pelas mãos do jornalista Mario Marques: Guinga - Os Mais Belos Acordes do Subúrbio (Ed.Gryphus), que teve lançamento de gala na noite de ontem (dia 14 - não por acaso, dia em que o compositor completava 52 anos). No Teatro Municipal de Niterói (RJ), Guinga fez show junto a Simone Guimarães e o saxofonista Sérgio Galvão; depois, com Mario, autografou o volume que tenta recontar sua curiosa - às vezes enigmática - trajetória.

"Essa coisa da biografia me deu duas sensações: a primeira foi maravilhosa; a segunda foi um pouco sombria, porque as pessoas só são biografadas depois de mortas, ou então quando já estão bem perto..." afirmou Guinga ao Cliquemusic sobre o livro em torno de sua vida. A incomum trajetória de Carlos Althier rumo ao status cult que ostenta começa no bairro de Sulacap, subúrbio do Rio de Janeiro. Mario Marques conta - de forma não-linear, e sempre centrado na música - como Guinga criou seu inimitável e refinado toque ao violão, autodidata, treinando o ouvido com bossa nova, seresta e jazz durante a juventude. Ao mesmo tempo, firmava-se a vocação para a odontologia, que o fez dividir-se entre o consultório e o violão por boa parte de sua(s) carreira(s).

"Na verdade, o livro não é uma história oficial", atalha Mario Marques, repórter do jornal O Globo (RJ) e atuante no jornalismo musical desde 1988. O autor diz que não quis fazer de Os Mais Belos Acordes do Subúrbio uma biografia autorizada, apesar de contar com a presença de Guinga em toda a construção do texto. "Conversei muito com ele para que entendesse que não poderia fazer um oba-oba. (O livro) iria ficar sem credibilidade, entende? Então tem as brigas, confusões, fraquezas, está tudo ali", declara Mario. A decisão do jornalista se prova acertada, pois o livro ganha ao não ficar no tradicional tom 100% laudatório das biografias tradicionais. Ainda assim, não resta dúvida para o autor de que o volume só vai fazer o mito Guinga.

Profissionalmente mais associado ao pop-rock, Marques conta que ouvir Guinga pela primeira vez foi como uma revelação. "Ele era muito mais desconhecido, não havia nem saído nenhuma grande reportagem em jornal sobre sua música. A música de Guinga para mim foi um passaporte para a música brasileira, para Chico, para Jobim, para Gil, para tudo que eu virava a cara. Entusiasmei-me com aqueles acordes quase eruditos, molhados de jazz e de choro. Coisas que jamais pensei em aceitar - tinha 20 anos, estava mais interessado em música pop, mas ele virou um clássico para mim", diz Mario. A vontade de contar a história do compositor veio em 1998, quando o jornalista já tinha se tornado amigo pessoal do dentista-violonista-compositor. "Sugeri (a idéia do livro) e ele topou. Sem compromisso. Sabíamos que ia sair um dia, mas não sabíamos quando. Até que pudemos executar o livro quase que integralmente como foi concebido. Como uma grande reportagem", fala Mario.

Em ritmo de reportagem, vemos Guinga encontrar com seus parceiros de fé - os letristas encarregados de completar os sofisticados choros, foxes, valsas e sambas criados no violão. Primeiro Paulo César Pinheiro, no começo dos anos 70 (quando o primeiro era um violonista anônimo, acompanhando a cantora Alaíde Costa). Depois, a união em 1988 com Aldir Blanc. Segue contando a inauguração de sua carreira discográfica, em 1990 (com o álbum Simples e Absurdo ouvir 30s) e seu emocionado encontro com o ídolo Chico Buarque (com quem fez Você, Você). E principalmente o crescente reconhecimento que o compositor passou a ter a partir dos anos 80, sendo gravado e regravado por medalhões como Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Ithamara Koorax, Elza Soares e Miúcha.

Mario Marques se preocupa em dar o devido valor a Guinga, já chamado de, por exemplo, "o desconhecido mais conhecido do Brasil" (por Oswaldo Montenegro). "O que tento fazer é demonstrar ao leitor que esse compositor chamado Guinga está predestinado a virar um capítulo importante da música brasileira", afirma Marques. "Tem muita gente que nem imagina como eu sou mas já ouviu falar do meu nome, conhece as minhas músicas. É uma coisa toda pela contramão, mas que deu certo", reconhece o próprio Guinga, que encontra na relativa obscuridade um refúgio para sua timidez. "Sou muito tímido. Já pensou que terrível, não poder nem ir ao cinema... imagino que deva ser horrível", fala o compositor.

Tímido e às vezes genioso e impulsivo, como Os Mais Belos Acordes do Subúrbio demonstra. O livro conta os rompimentos não muito diplomáticos com os parceiros mais importantes, Paulinho Pinheiro e Aldir. O primeiro saiu da vida de Guinga no fim dos anos 80; o violonista se achava "menosprezado" pelo letrista. Ao invés de tentar esclarecer a situação, Guinga simplesmente desligou-se do convívio com Pinheiro. Já Aldir Blanc foi o suposto ofendido por declarações de Guinga à imprensa sobre a parceria; desde 1999 não compõem juntos. "Ele é uma pessoa reconhecidamemte de personalidade difícil", conta Mario Marques, afirmando que várias histórias pitorescas, que poderiam enriquecer ainda mais o livro, ficaram de fora do texto final. "Guinga veio a minha casa para ler o livro e saiu derrotado. Achou que eu estava derrubando-o. Muitas histórias ficaram de fora a pedido dele, outras eu me auto-censurei. Sabia que podia ter problemas e ele também. Mas não há revelação que seja mais importante que a amizade dele", narra Mario.