Gerson King Combo: o Rio tem o Rei do Balanço

Primeiro show solo do cantor e lenda do soul brasileiro em mais de vinte anos emociona fãs anônimos e estrelas da música pop

Silvia D
05/12/2000
Num país caracterizado pela falta de memória, é de se comemorar a volta aos palcos desse astro da música soul brasileira que é também um dos pioneiros do rap no país: Gerson King Combo, 56, lotou a casa de shows Hipódromo Up (Rio de Janeiro) em plena segunda-feira à noite, atiçando o público composto de antigos e novos fãs ávidos pelo seu balanço.

A história de King Combo coincide com a eclosão do movimento Black Rio, em pleno período de repressão militar (meados dos anos 70). O fato de ter sumido após um breve auge, segundo ele, pode ser atribuído ao fato de ter cantado a beleza e o poder da cultura negra durante os momentos mais duros de perseguição política/ideológica, disparando versos como "Eu, você e Deus somos uma pessoa só, brother!", "Dançar como dança um Black" e "Eu te amo, brother." Altamente afirmativo e, para os padrões vigentes à época, subversivo.

A noite começou com o excelente DJ Negralha tocando pérolas da música negra mixadas com muita propriedade e enfeitadas por boas intervenções de scratch. A seguir, o grupo feminino de rap Anfetaminas fez um pequeno set de cinco músicas, suficientes para cativar a platéia, alternando discurso feminista com o tradicional discurso social típico do estilo. Suas rimas sobre homens dependentes de mulheres em Malandro Caracol arrancaram gargalhadas.

Finalmente, a banda Clave de Soul, um combinado de primeira qualidade que reúne integrantes das bandas Black Rio e Vitória Régia (que acompanhava Tim Maia), começou a se posicionar. Depois de um número de abertura tipo samba-jazz, Gerson surgiu por entre o público, de chapéu e casaca preta onde se lia seu nome em letras prateadas nas costas. Todos se levantaram e nunca mais voltaram às suas cadeiras: era impossível ficar sentado diante daquela presença nobre e impactante. Iniciando os trabalhos com Jingle Black e Mandamentos Black, o rei do balanço acariciou os ouvidos dos presentes com uma voz que é ao mesmo tempo macia e rascante, e logo de cara a emoção tomou uma via de mão dupla. "Obrigado, vocês amam esse negão aqui", disse, ao final da primeira canção. Alguém na platéia gritou: "Tô arrepiado, cara!" E não era para menos.

Além de a voz de King Combo estar em boa forma, suas músicas parecem frescas como se fossem composições recentes. Sua elegância completa o quadro do que se espera de uma verdadeira estrela, incluindo aí o carinho com que trata artistas mais jovens, como a cantora Andréa Dutra. O dueto que os dois prepararam para Foi Um Sonho Só ficou bastante delicado na voz cristalina de Andréa, que sintetizou o sentimento da noite ao declarar: "O rei está vivo! Viva o rei!!!"

Furor dançarino
A volta de Gerson à mídia e à cena musical começou a se desenhar em julho, quando a produtora Elza Cohen percebeu que o soulman era unanimidade entre os fãs e promotores de música negra. Eventualmente, ela conseguiu fazê-lo se apresentar em playbacks durante a festa semanal Zoeira, dedicada ao hip hop. De lá para cá, o mitológico cantor tomou um fôlego crescente, se apresentando com grande sucesso no circuito de black music de São Paulo. "O pessoal do 509-E (dupla paulistana de rap) veio me cumprimentar com lágrimas nos olhos. Eu fiquei assim, 'o que é que tá acontecendo?" O Brasil está se curando da amnésia, King.

O mesmo motivo que ocasionou seu sumiço do cenário musical brasileiro é tido por Gerson como razão de sua volta. As mensagens políticas contidas em suas canções voltaram a fazer muito sentido quando o rap, estilo de música que busca consciência sobre as condições de vida, se tornou um estilo mais comercial e divulgado. Músicos de rap, por sua vez, trataram de reabilitar o talento de seu precursor. "O hip hop veio com a mentalidade dos negros de 2000. Na minha época, a repressão era bárbara, mas os pais deles ouviam meus discos. A alegria deles comigo é que me deu vontade de voltar", afirma Combo.

Marcelo D2, visivelmente emocionado, abraçou Gerson e não disse nada. Só encostou a cabeça na generosa barriga do rei e sorriu. Bi Ribeiro, baixista dos Paralamas, declarou: "O show dele é pressão total, estou impressionado. Ele é o professor, é o mestre!" Da Gama, guitarrista do Cidade Negra, foi mais um a engrossar o coro dos contentes: "Meus irmãos me levavam pros bailes do Gerson quando eu tinha uns 12 anos. E eu ficava fascinado. Estou muito emocionado." A recíproca era mais que verdadeira. Gerson também fica fascinado ao constatar que é adorado por tanta gente famosa. "Isso faz bem ao meu ego", confessou.

King Combo está em estúdio trabalhando na pré-produção de seu próximo disco. Segundo Elza Cohen, os dois ainda esperam reverter um mau contrato assinado pelo homem-soul para em seguida dar continuidade ao projeto. Ao mesmo tempo, os raros discos originais de Gerson são vendidos pelo mundo através da Internet, cotados em torno de 220 dólares cada, e cópias em CD-R deles podem ser encontradas facilmente em lojas em São Paulo - este, porém, é um comércio paralelo que não dá nenhum retorno financeiro ao artista. Nesse meio tempo, Combo ainda fará shows em São Paulo, acompanhado do grupo Funk Como Le Gusta, e em Belo Horizonte, acompanhado pela banda Berimbrown. Enquanto a bolacha nova não vem, amém, King Combo, amém (foto de Mariana Vitarelli).