Gil e Milton se encontram na Bahia-Minas

Depois de desenvolverem a convivência, os dois gigantes da MPB gravam disco no qual exercitam parceria e homenageiam os seus antecessores musicais

Carlos Calado
25/10/2000
“Uma drenagem no sistema linfático da alma”. Assim Gilberto Gil sintetiza o significado mais íntimo de seu esperado encontro musical com Milton Nascimento. A inédita parceria resultou no álbum Gil & Milton, lançamento da WEA que está chegando ao mercado nesta semana. “Eu chorei muito, me emocionei muito fazendo esse disco, desde nossos primeiros encontros na Bahia, quando começamos a compor as músicas. Foi um trabalho de ascese, de limpeza de alma. Se eu resumisse em uma palavra esse encontro seria emoção”, diz o cantor e compositor baiano.

Apesar de a parceria já ter sido aventada por Gil e Milton cinco anos atrás, durante um vôo originário de Salvador que os levava de volta do festival PercPan (Panorama Percussivo Mundial), o baiano e o carioca que cresceu em Minas Gerais só decidiram efetivamente pôr mãos à obra em outubro de 1999. “Passamos um ano interagindo, nos vivenciando mutuamente”, conta Gil, avaliando o resultado interior dessa convivência. “Milton me puxou para o lado mais silencioso, para o lado recolhido dele. Como isso não podia ser feito à custa de meu lado natural, que tem uma certa exuberância, eu fiquei meio no ar”, analisa o baiano, escolhendo a imagem de um condor para descrever a atitude musical do parceiro.

“Embora Milton tenha uma personalidade que dá a impressão de vir das profundezas dos abismos oceânicos, a voz dele se projeta lá nas alturas montanhosas. Nesse sentido, ele é um condoreiro. Ele está sempre vendo de longe, olhando de cima”, compara Gil. “Como eu sou da terra, como a minha música é muito telúrica, acho que o Milton me suspendeu um pouco, para um lugar de que eu não tenho alcance. Isso se traduz no meu jeito mais calmo de cantar nesse disco.”

Quando finalmente se sentaram, um ano atrás, para pensar no provável repertório do álbum, a primeira sugestão de Milton foi Bom Dia – uma canção pouco conhecida que Gil compôs com a cantora Nana Caymmi, em 1967, época em que ele e a filha de Dorival Caymmi viviam juntos em São Paulo. “Só ouvi essa canção uma vez, no Festival da TV Record, mas ela nunca mais me saiu da cabeça”, recorda Milton. Gil foi buscar no mesmo período uma canção do mineiro que também o impressionou desde a primeira audição: Canção do Sal. “Eu insisti com Elis para que ela a gravasse. Sempre fui apaixonado por essa música”, retribui o baiano.

Os parceiros contam que também não precisaram discutir, quando decidiram homenagear dois mestres da canção brasileira: um baiano e um mineiro, naturalmente. De Dorival Caymmi, Milton escolheu Dora. Gil retrucou com Maria, de Ary Barroso. Um terceiro mestre foi somado mais tarde aos dois primeiros: Luiz Gonzaga, homenageado com Baião da Garoa. Outra referência básica para a geração de ambos foi aceita de cara por Milton. “Ele disse que poderia ser qualquer uma dos Beatles”, conta Gil, que acabou sugerindo a versão reggae de Something, de George Harrison.

“Caetano me preveniu para não pressionar muito o Milton”, diz Gil, sorrindo ao lembrar que não seguiu muito à risca o conselho do amigo. Quando se encontraram em Salvador, durante as férias do último verão, para comporem as novas canções do disco, Gil foi logo intimando Milton a voltar a escrever letras, como fazia no início da carreira. Assim nasceu Sebastian (canção escolhida como música de trabalho do álbum), que a pedido de Milton ganhou “uma daquelas músicas sacudidas” tão típicas de Gil.

Outra composição inédita com letra de Milton e música de Gil é Duas Sanfonas. A participação especial da dupla sertaneja Sandy & Júnior, nessa faixa, promete render polêmicas. “Pensei neles por serem dois meninos jovens, de outra geração. Gosto do jeito singelo que eles cantam”, justifica Gil. “Não temos que ficar pensando no que os outros vão achar. Quando gravei o Clube da Esquina, a imprensa disse que eu estava acabado. E foi a mesma coisa com o Clube da Esquina nº 2. Tudo o que está nesse disco tem a nossa cara”, reforçou Milton. Gil diz não acreditar nem mesmo na possibilidade de que Duas Sanfonas venha a tocar nas rádios por causa da presença de Sandy & Júnior. “A produção dessa faixa não foi feita para torná-la competitiva. Gostei de que ela tenha ficado mais low profile, no sentido da produção.”

A turnê de lançamento do álbum Gil & Milton começa no Rio de Janeiro, no dia 23 de novembro, no palco do Canecão. Depois segue por São Paulo (provavelmente dia 3 de dezembro, no DirecTV Music Hall), Belo Horizonte e Recife. Gil e Milton também estão escalados para a próxima edição do Rock in Rio, em janeiro, mas vão se apresentar com suas respectivas bandas, em shows individuais. “Talvez façamos algum número juntos, eventualmente”, avisa Gil.