Guilherme de Brito reencontra seus clássicos
Junto ao Trio Madeira Brasil, o veterano sambista regrava seus sucessos em A Flor e o Espinho
Marco Antonio Barbosa
21/05/2003
Quando, afinal, retornou ao estúdio após quase duas décadas (em 2000,
surpreendentemente já beirando os 80 anos), Guilherme de Brito ateve-se a canções
inéditas, de uma produção que não parou - ainda que distante dos holofotes. O peso da
história, com H maiúsculo, foi maior agora. Para escolher o repertório do novo solo,
A Flor e o Espinho, que acaba de sair pela Lua Discos, a lenda viva do samba
carioca preferiu cantar suas glórias passadas. "Já ao terminar de gravar o primeiro disco
(Samba Guardado ) eu sabia que, no próximo, eu queria fazer a minha versão de
A Flor e o Espinho. Queria fazer uma revisão de carreira, mas de uma maneira
que soasse diferente", afirma o veterano sobre a talvez mais célebre de suas parcerias
com Nelson Cavaquinho. Pois, com o fundo instrumental do Trio Madeira Brasil, a
produção de Moacyr Luz e a colaboração de um punhado seleto de amigos ilustres,
Guilherme conseguiu seu intento.
Já a partir do título, referência ao sucesso composto em 1957, o novo álbum mira o passado glorioso de Guilherme. Em especial, a frutífera dobradinha com Nelson Cavaquinho, que rendeu dez das 12 faixas do disco e que se estendeu até a morte do parceiro, em 1986. Parceria essa solidificada por um pacto travado entre os dois sambistas, hoje lendário. "Ele (Nelson) foi quem propôs esse pacto. Depois, ele mesmo andou quebrando, pulando a cerca, compondo com uns e outros por aí", lembra Guilherme. "Mas ele achava que eu era o parceiro ideal para ele e assim eu fui leal até o fim. Eu o respeitava." Mesmo carregando, ao longo dos anos, o estigma de parceiro oculto do boêmio Cavaquinho.
A Flor e o Espinho é o segundo dos três álbuns que Guilherme de Brito deve gravar pela Lua Discos, gravadora para onde foi levado por Moacyr Luz (também produtor de Samba Guardado). "Esse disco era para se chamar Canto do Cisne 2, assim como o Samba Guardado deveria ser o Canto do Cisne original", brinca Luz com a longevidade de Guilherme e também com sua irregular trajetória fonográfica. "Eu o convidei (a Brito) para fazer mais um disco e ele logo veio com a idéia das regravações, de pegar as músicas conhecidas. Mas logo vi que não seria fácil", afirma o sambista e produtor, preocupado em como resgatar dignamente clássicos como Folhas Secas, Quando Eu me Chamar Saudade e Pranto de Poeta.
Daí surgiu a idéia de manter o álbum o mais econômico e enxuto o possível, escolhendo um grupo que já contasse com um entrosamento natural. "Resolvi convidar o Trio Madeira Brasil depois de ouvir a versão que o Zé (Zé Paulo Becker, violonista do grupo) gravou de Folhas Secas. Uma coisa límpida, primorosa. E assim também o disco teria o sabor dessa nova geração de sambistas jovens do Rio, que já revelou tanta gente boa", fala Luz, referindo-se à patota de nomes como Teresa Cristina e os grupos Semente, Rabo de Lagartixa, Maogani e o próprio Madeira Brasil.
Becker, Marcello Gonçalves (violão de sete cordas) e Ronaldo do Bandolim compõem a única base instrumental do disco - o que deixa em primeiro plano a voz de Guilherme, que aponta as marcas do tempo mas ainda soa firme o suficiente. "As gravações foram muito emocionantes, a cada hora eu parava para admirar como os sambas ficaram bonitos, leves. Os arranjos só com os violões e os bandolins deram outra cara às músicas, ficaram como eu nunca havia ouvido antes", diz Guilherme. Segundo testemunhas dos trabalhos em estúdio - realizados no segundo semestre do ano passado, no Rio de Janeiro - os momentos de literais "nós na garganta", tanto para o cantor quanto para os músicos e o produtor, foram vários.
"Todas essas músicas já tinham suas versões definitivas", fala Moacyr Luz, referindo-se às gravações nas vozes de Roberto Silva, Elis Regina, Beth Carvalho, Paulinho da Viola e outros cobras. Mas este acerto de contas de Guilherme com suas criações era devido há décadas. "Sempre tive dificuldade de gravar minhas próprias músicas. Quando me chamaram pra gravar novamente, eu já nem esperava mais nada nesse sentido, foi uma grande surpresa. Já tinha cansado de lutar", afirma Guilherme, referindo-se à magra carreira discográfica iniciada apenas em 1974 (num disco creditado a Nelson Cavaquinho). "É por isso que o disco soa como um desabafo", completa Luz. "É também uma forma de reparação."
Assumindo humildes o papel de coadjuvantes, Fagner, Beth Carvalho e Elton Medeiros são os convidados especiais do álbum. Cada qual merece um capítulo na biografia de Guilherme. Com Fagner, o veterano canta Distância, composta pela dupla. "Fagner foi meu primeiro parceiro depois que o Nelson morreu. Essa versão ficou muito bonita, com um arranjo lembrando um fado", ressalta o sambista. Beth Carvalho, amiga de primeira hora, sempre fez questão de gravar ao longo dos anos sambas da parceria Guilherme/Nelson e aqui pontifica em Folhas Secas. "Ela iria gravar originalmente Pranto de Poeta, mas Folhas Secas era mais marcante", fala Guilherme. E Elton Medeiros, com quem gravou o antológico Quatro Grandes do Samba (de 1977, com Candeia e Nelson), chega sutil, contribuindo com uma singela batucada na caixinha de fósforos para Gotas de Luar.
Com 82 anos completos em janeiro passado, Guilherme de Brito diz-se à vontade com a velhice e a inevitabilidade da morte - mesmo cantando músicas quase sempre amarguradas, que poderiam refletir um espírito pessimista. "A melancolia é bonita. A tristeza sempre toca mais a gente que a alegria, isso eu aprendi com o Nelson", fala o veterano. "Tinhamos motivo para cantar toda aquela tristeza, levávamos uma vida difícil, pobre. Hoje em dia, especialmente depois que voltei a gravar, não tenho mais motivo para isso. É claro que já sei que estou na idade de ser o bola da vez, mas isso não me incomoda."
Já a partir do título, referência ao sucesso composto em 1957, o novo álbum mira o passado glorioso de Guilherme. Em especial, a frutífera dobradinha com Nelson Cavaquinho, que rendeu dez das 12 faixas do disco e que se estendeu até a morte do parceiro, em 1986. Parceria essa solidificada por um pacto travado entre os dois sambistas, hoje lendário. "Ele (Nelson) foi quem propôs esse pacto. Depois, ele mesmo andou quebrando, pulando a cerca, compondo com uns e outros por aí", lembra Guilherme. "Mas ele achava que eu era o parceiro ideal para ele e assim eu fui leal até o fim. Eu o respeitava." Mesmo carregando, ao longo dos anos, o estigma de parceiro oculto do boêmio Cavaquinho.
A Flor e o Espinho é o segundo dos três álbuns que Guilherme de Brito deve gravar pela Lua Discos, gravadora para onde foi levado por Moacyr Luz (também produtor de Samba Guardado). "Esse disco era para se chamar Canto do Cisne 2, assim como o Samba Guardado deveria ser o Canto do Cisne original", brinca Luz com a longevidade de Guilherme e também com sua irregular trajetória fonográfica. "Eu o convidei (a Brito) para fazer mais um disco e ele logo veio com a idéia das regravações, de pegar as músicas conhecidas. Mas logo vi que não seria fácil", afirma o sambista e produtor, preocupado em como resgatar dignamente clássicos como Folhas Secas, Quando Eu me Chamar Saudade e Pranto de Poeta.
Daí surgiu a idéia de manter o álbum o mais econômico e enxuto o possível, escolhendo um grupo que já contasse com um entrosamento natural. "Resolvi convidar o Trio Madeira Brasil depois de ouvir a versão que o Zé (Zé Paulo Becker, violonista do grupo) gravou de Folhas Secas. Uma coisa límpida, primorosa. E assim também o disco teria o sabor dessa nova geração de sambistas jovens do Rio, que já revelou tanta gente boa", fala Luz, referindo-se à patota de nomes como Teresa Cristina e os grupos Semente, Rabo de Lagartixa, Maogani e o próprio Madeira Brasil.
Becker, Marcello Gonçalves (violão de sete cordas) e Ronaldo do Bandolim compõem a única base instrumental do disco - o que deixa em primeiro plano a voz de Guilherme, que aponta as marcas do tempo mas ainda soa firme o suficiente. "As gravações foram muito emocionantes, a cada hora eu parava para admirar como os sambas ficaram bonitos, leves. Os arranjos só com os violões e os bandolins deram outra cara às músicas, ficaram como eu nunca havia ouvido antes", diz Guilherme. Segundo testemunhas dos trabalhos em estúdio - realizados no segundo semestre do ano passado, no Rio de Janeiro - os momentos de literais "nós na garganta", tanto para o cantor quanto para os músicos e o produtor, foram vários.
"Todas essas músicas já tinham suas versões definitivas", fala Moacyr Luz, referindo-se às gravações nas vozes de Roberto Silva, Elis Regina, Beth Carvalho, Paulinho da Viola e outros cobras. Mas este acerto de contas de Guilherme com suas criações era devido há décadas. "Sempre tive dificuldade de gravar minhas próprias músicas. Quando me chamaram pra gravar novamente, eu já nem esperava mais nada nesse sentido, foi uma grande surpresa. Já tinha cansado de lutar", afirma Guilherme, referindo-se à magra carreira discográfica iniciada apenas em 1974 (num disco creditado a Nelson Cavaquinho). "É por isso que o disco soa como um desabafo", completa Luz. "É também uma forma de reparação."
Assumindo humildes o papel de coadjuvantes, Fagner, Beth Carvalho e Elton Medeiros são os convidados especiais do álbum. Cada qual merece um capítulo na biografia de Guilherme. Com Fagner, o veterano canta Distância, composta pela dupla. "Fagner foi meu primeiro parceiro depois que o Nelson morreu. Essa versão ficou muito bonita, com um arranjo lembrando um fado", ressalta o sambista. Beth Carvalho, amiga de primeira hora, sempre fez questão de gravar ao longo dos anos sambas da parceria Guilherme/Nelson e aqui pontifica em Folhas Secas. "Ela iria gravar originalmente Pranto de Poeta, mas Folhas Secas era mais marcante", fala Guilherme. E Elton Medeiros, com quem gravou o antológico Quatro Grandes do Samba (de 1977, com Candeia e Nelson), chega sutil, contribuindo com uma singela batucada na caixinha de fósforos para Gotas de Luar.
Com 82 anos completos em janeiro passado, Guilherme de Brito diz-se à vontade com a velhice e a inevitabilidade da morte - mesmo cantando músicas quase sempre amarguradas, que poderiam refletir um espírito pessimista. "A melancolia é bonita. A tristeza sempre toca mais a gente que a alegria, isso eu aprendi com o Nelson", fala o veterano. "Tinhamos motivo para cantar toda aquela tristeza, levávamos uma vida difícil, pobre. Hoje em dia, especialmente depois que voltei a gravar, não tenho mais motivo para isso. É claro que já sei que estou na idade de ser o bola da vez, mas isso não me incomoda."