Guinga: a genialidade simples na ponta dos dedos
Em entrevista a CliqueMusic, o compositor fala sobre seu quinto disco, Cine Baronesa, que chega às lojas na próxima semana, e revela:
Nana Vaz de Castro
29/03/2001
Dez anos depois do lançamento de seu primeiro disco, Simples e Absurdo
, que inaugurou a gravadora Velas, Guinga ainda se divide entre a música e o consultório de odontologia, onde clinica duas vezes por semana. Adorado pelos músicos e pouco conhecido do público em geral, sua permanência no cenário da música brasileira já pode ser comprovada por iniciativas como a biografia que vem sendo escrita e o songbook com suas músicas, que está sendo editado.
Carioca que trocou o subúrbio pelo litorâneo Leblon — bairro onde vive boa parte da MPB —, Guinga cultiva hábitos pouco ortodoxos, como lavar o chão de casa depois que as pessoas vão embora, por causa da sujeira dos sapatos, ou caminhar enormes distâncias, para evitar o trânsito. Gosta de cinema, mas não vai assistir a um filme há quatro anos. É um dos maiores violonistas do país, mas diz que seu sonho é ter um bom violão e um bom case (caixa) para guardá-lo. Além disso, não usa pijama nem chinelo, por causa do trauma de uma doença na infância, que o obrigou a passar um mês de cama. Não mexe com computador e nem costuma ouvir CDs em casa, só rádio.
Em entrevista a CliqueMusic, Carlos Althier de Souza Lemos Escobar fala sobre fama, parcerias, influências musicais, novos violonistas e, claro, o novo disco, Cine Baronesa
. Os cariocas serão os primeiros a ouvir as novas composições: o lançamento é no dia 3 de abril, às 19h30, no Sesc Rio Arte (Av. N.S. de Copacabana 360, Rio), e Guinga será (bem) acompanhado por Paulo Sérgio Santos (sopros), Cris Delano (voz) e Lula Galvão (violão). "Detesto encarar o palco sozinho", diz.
CliqueMusic — Cine Baronesa é o seu quinto disco solo. Como ele se insere na sua discografia?
Guinga — O disco vem contando uma história, mais ou menos na onda do Cheio de Dedos
e do Suíte Leopoldina
. É um disco-irmão do Suíte Leopoldina, os dois têm vários arranjos do Gilson Peranzzetta. Fora isso, agora tem dois arranjos do Maogani e dois do [Nailor] Proveta. Este está um pouco mais instrumental que os primeiros, mas um pouco menos instrumental do que o Suíte Leopoldina.
CliqueMusic — Você só começou a gravar músicas instrumentais no seu terceiro disco, Cheio de Dedos, certo?
Guinga — Eu sempre fui um compositor de canções, mas encontrei uma maneira de botar pra fora minha vontade de ver as coisas de uma maneira instrumental. Sou um compositor de canções, mas sempre gostei muito da música instrumental. Na realidade, eu sempre ouvi mais música instrumental do que canção. Ouvi muita canção, sou um compositor de canções, inclusive é como eu sou melhor compositor, mas tentei viabilizar também a linguagem instrumental. No Cheio de Dedos eu tinha vontade de saber como seriam minhas músicas tocadas instrumentalmente, porque até então só tinha gravado canções, e aí eu gostei. Gostei tanto que repeti a dose no Suíte Leopoldina, mas praticamente hoje posso dizer que encerro — quer dizer, uma coisa que se aprende nos cursos de medicina e odontologia é a não dizer "nunca" nem "sempre" — mas de agora em diante quero que meus discos venham mais com canções. Porque o negócio do instrumental nos meus discos foi para tentar viabilizar o meu trabalho fora do Brasil.
CliqueMusic — E viabilizou?
Guinga — Sim, eu fui à Europa três vezes seguidas, sempre chamado para projetos instrumentais. De certa forma, a música instrumental é uma linguagem universal, que todo mundo entende. O cara pode até ouvir a letra sem entender, gostar do som... eu fui fazer show instrumental na Europa mas cantei também.
CliqueMusic — Mas as suas músicas, mesmo as que têm letra, são bastante gravadas por grupos instrumentais, como por exemplo Di Menor (gravada pelo Quinteto Villa-Lobos
e pelo Quarteto Maogani
), Choro pro Zé (gravado por Água de Moringa
e Marco Pereira
) ou Nítido e Obscuro (gravado por Bartholomeu Wiese & Afonso Machado
, Turíbio Santos, Pife Muderno
).
Guinga — É verdade. No disco do Quinteto Villa-Lobos
tem várias músicas minhas, e muitas são regravadas instrumentais.
CliqueMusic — Este ano completam-se dez anos da gravação do seu primeiro disco (Simples e Absurdo). Apesar de você tocar e compor profissionalmente desde os anos 70, na década de 90 houve um boom de gravações de músicas suas por outros intérpretes.
Guinga — É verdade, nos anos 80 eu quase não fui gravado, fiquei mais esquecido. Agora, outro dia recebi a notícia que nos Estados Unidos quatro cantoras americanas gravaram músicas minhas este ano, e eu nem sabia. É ruim porque a editora não computa e eu não recebo um tostão. Nem sei o nome das cantoras, na verdade. Eu preciso ser gravado, porque é a maneira de a obra ficar, e também ajuda um pouquinho na arrecadação dos direitos autorais. Você vê, agora está fazendo dez anos do meu primeiro disco, e eu estou no quinto. Mais o que a Leila Pinheiro gravou [Catavento e Girassol
, só com músicas de Guinga e Aldir Blanc], seis discos. São 84 músicas. É um bom número, não? Fora as que outras pessoas gravaram.
CliqueMusic — São cerca de 150 gravações de músicas suas, incluindo os seus próprios discos.
Guinga — 150? É bastante, eu acho. Pode não ser tanto em número, mas conta pela qualidade, né? Vê o Dorival Caymmi, por exemplo, parece que ele tem 80 e poucas músicas compostas, e é um gênio, um dos maiores feras do Brasil de todos os tempos. Então o que conta é a qualidade. O Tom Jobim, por exemplo, foi começar a gravar com 35, 36 anos. Cartola foi gravar com quase 70. Então é legal ser gravado, e ajuda na pontuação dos direitos autorais.
CliqueMusic — Que devem ter aumentado bem nos últimos dez anos...
Guinga — De vez em quando a arrecadação melhora, à medida que vão gravando dá uma levantada, o pessoal toca em shows, às vezes. Eu preciso, porque hoje em dia eu vivo disso.
CliqueMusic — E o consultório?
Guinga — O consultório foi ficando em segundo plano, por causa da música, principalmente nos últimos 5, 6 anos. E eu propositadamente fui me dedicando menos e menos ao consultório, então hoje em dia eu não posso viver só do consultório. Eu vivo também do consultório. Eu quis viver de música também, o que é uma opção meio louca, diminuir a odontologia para viver de música, mas enfim.
CliqueMusic — Mas durante um bom tempo você viveu mais da odontologia.
Guinga — Muito mais, durante uns 16 anos vivi só de odontologia, e ganhava bem melhor do que ganho hoje. Agora eu ganho menos, mas estou mais feliz. A música é algo que a gente nunca sabe, de repente pode dar uma porrada boa aí e render uma boa grana, tem dessas coisas. Por exemplo, eu casei com dinheiro de música.
CliqueMusic — Como assim?
Guinga — Graças à Valsa de Realejo
, que a Clara Nunes gravou [no disco Claridade, de 75]. Na época ela vendeu 300 mil cópias do disco em um mês, e eu arrecadei uma boa grana, o que equivaleria hoje a uns 30 mil reais, talvez. Então comprei o que precisava, eletrodomésticos, aluguei um apartamento, tudo com o dinheiro de uma música só.
CliqueMusic — Você consegue um bom espaço nos jornais e publicações especializadas, os músicos falam de você, gravam suas músicas, mas você nunca aparece na televisão ou toca no rádio?
Guinga — No Rio, não toco nada. TV também, nem pensar. Uma vez eu fui apresentado ao Oswaldo Montenegro, falaram para ele "este aqui é o Guinga", e ele disse "Guinga? Você é o desconhecido mais conhecido do Brasil!". Tem muita gente que nem imagina como eu sou mas já ouviu falar do meu nome, conhece as minhas músicas. É uma coisa toda pela contramão, mas que deu certo.
CliqueMusic — Alguns letristas de MPB se ressentem disso, de serem pouco lembrados e pouquíssimo conhecidos, de todo mundo conhecer as músicas mas não saberem como é a cara da pessoa que escreveu a letra. Você sente falta de mostrar mais a cara?
Guinga — Bem, agora isso já diminuiu em mim. A minha vida é diferente da dos meus parceiros, do Aldir e do Paulinho Pinheiro, porque eu vou para o palco. Eles ficam mais dentro de casa fazendo as letras. A arte deles é na alcova, eles podem produzir muito e continuar ali. Mas o músico, ainda por cima se canta um pouquinho, como eu canto, isso quase não chega em mim.
CliqueMusic — Como você começou a cantar? Como surgiu o Guinga cantor?
Guinga — Eu me vi obrigado a cantar. Não canto merda nenhuma, não me considero cantor, sei que não canto bem, mas ao mesmo tempo eu acho que sou a pessoa que dá mais fielmente o semblante da minha música. Geralmente o compositor é assim. O maior exemplo é o Nelson Cavaquinho. Se você for analisar a voz do Nelson, não era bonita, mas eu adoro ele cantando as músicas dele, assim como adoro o Chico cantando as músicas dele... o melhor intérprete de Chico é Chico, do Tom é o Tom, do Cartola é o Cartola e por aí vai.
CliqueMusic — Mas tanto Nelson Cavaquinho quanto Cartola quanto você passaram a ser conhecidos na voz de outros intérpretes, não começaram cantando suas próprias músicas.
Guinga — É verdade, eu canto por uma necessidade de poder me manifestar, de ter de ir para o palco trabalhar, você acaba sendo obrigado a cantar. E também para se viabilizar como produto artístico, porque um compositor que ninguém conhece a cara, que ninguém ouve a voz, está fadado a ter mil músicas gravadas e ninguém saber quem é. Os letristas que você falou, o Fernando Brant, por exemplo, é uma cara pouco conhecida. Há uns três anos ele falou comigo no aeroporto, disse que gostava das minhas músicas, e eu disse "muito obrigado, mas me desculpe, eu não estou sabendo quem é você". Quando ele falou "eu sou o Fernando Brant" eu quase morri de vergonha, porque é claro que eu sei quem ele é, e sei muito, mas não conheço a cara. Nunca o vi na televisão, nunca fixei a imagem, não é culpa minha, e nem dele, mas é porque a televisão não se interessa por esse tipo de artista. A TV só se importa com carinhas bonitas. E só até uma certa idade, depois que uma cantora passa de uma idade não aparece mais. Não precisa ter boa voz, só um rostinho bonito. Então ninguém se interessa por um cara como eu na televisão. Nunca fiz nada na TV, nunca me chamaram para nada.
CliqueMusic — Mas você se torna mais conhecido porque faz muitos shows pelo Brasil.
Guinga — Ah, sim, shows demais, viajo muito. Em jornais eu apareço muito, graças a Deus. O que eu tenho de matéria sobre mim em casa, que saiu nesta década... Muita coisa.
CliqueMusic — E as pessoas te reconhecem na rua, te param, pedem autógrafo?
Guinga — Pouco, mas muito mais do que eu pensava que poderia ser. Na rua, caminhando aqui pelo Leblon, Ipanema, pela praia, é muito comum as pessoas pararem, falarem comigo, darem um até logo. Tem muita gente que eu nem sei quem é, com quem eu já devo ter falado em alguma ocasião, e que fala comigo com a maior intimidade, aí eu respondo. Às vezes buzinam, no carro, ou falam comigo no aeroporto, é muito comum. Não é uma tônica na minha vida, mas eu curto isso, porque é algo que está sendo feito em doses que eu posso curtir. Acredito que se fosse feito de uma maneira que acabasse com a minha privacidade ou que eu tivesse que parar de 5 em 5 minutos eu ia ter pavor disso.
CliqueMusic — Você é tímido?
Guinga — Sou. Muito. Já pensou que terrível, não poder ir ao cinema, ter que ir caracterizado, como o Roberto Carlos ia... Não que eu esteja me comparando com ele, mas imagino que deve ser horrível. Uma das raras pessoas que eu vejo andando pela rua numa boa é o Chico Buarque. Ele anda pela praia, se tiver de ir na farmácia, ele vai, já o encontrei uma vez na Sendas do Leblon... Isso não é muito comum, um cara com a notoriedade do Chico, o compositor mais famoso do Brasil. Tem outros que com muito menos fama já tiram onda de ficar dentro da limusine, com seguranças. No fundo esses caras adoram ser parados na rua, mas tiram uma onda de ser o contrário.
CliqueMusic — É bom, então, essa certa notoriedade?
Guinga — É. Muito pior do que te pararem na rua a todo momento é ser um artista anônimo. Mesmo quando as pessoas te alugam, porque às vezes alugam mesmo. Uma vez eu estava andando pela rua, e ouvi um cara gritando "Guinga! Guinga! Guinga!". Quando eu olhei ele disse "eu te conheci no Rio Grande do Sul, vi teu show, achei muito legal". Depois ele falou "Guinga, pelo amor de Deus, eu acho que eu desloquei o braço, me leva no hospital, que eu não conheço nada por aqui!". Eu levei o cara no [hospital] Miguel Couto, acabou com a minha caminhada (risos). Pelo lado humano, eu tinha que tomar uma atitude daquela, o cara estava mal, cheio de dor, não conhecia ninguém, me reconheceu... Depois estive com esse cara em Porto Alegre, ele foi ver o meu show, e ficou meu camarada. Então é o que eu estava dizendo, muito pior do que te pararem na rua por você ser uma pessoa pública, as pessoas gostarem de você e quererem desfrutar um pouco de você, é ser um anônimo. Eu vivi anônimo a minha carreira quase toda.
CliqueMusic — Então você gosta da fama.
Guinga — Lógico. Mas veja bem, não é que eu corra atrás da fama nem que seja um escravo da fama. Mas eu sou um cara que adora a fama, e quem disser o contrário está mentindo. Não acredito no famoso que diz que tem raiva da fama. O cara fez tudo na vida para ser famoso, e quando vira famoso diz que tem raiva da fama? É uma demagogia. Quem é famoso é porque fez tudo pra ser famoso, é porque quis ser famoso. Até o bandido que fica famoso, ele faz pelo caminho do mal porque quer uma notoriedade, quer chamar a atenção. Então não me diga que o cara que é famoso na música tem raiva disso. Ele fez tudo para ser famoso! Já imaginou um artista morrer anônimo, como Van Gogh? O que esse cara não deve ter sofrido na vida, com o anonimato?
CliqueMusic — E agora você vai ser biografado...
Guinga — Pois é.
CliqueMusic — O jornalista Mario Marques está escrevendo sua biografia, a quantas anda o livro?
Guinga — Já está quase tudo pronto, mas pelo que eu sei o Mario ainda tem que falar com pessoas muito importantes na minha vida, como a minha mulher e as minhas duas filhas. Mas comigo e a maioria das pessoas ele já falou. Pelo que sei já está quase pronto, só falta o tête-à-tête com essas pessoas.
CliqueMusic — Ter uma biografia aos 50 anos já está um passo além do que estávamos falando sobre fama e ser parado na rua, não?
Guinga — Essa coisa da biografia me deu duas sensações: a primeira foi maravilhosa; a segunda foi um pouco sombria, porque as pessoas só são biografadas depois de mortas, ou então quando já estão bem perto... Mas enfim, não se pode ficar baseado nessa regra, nada contra eu ser a exceção, e aos 50 anos já estar biografado, mas normalmente o biografado em vida tem que ser um cara muito famoso, o que não é o meu caso, perto do que se pode considerar uma pessoa famosa.
CliqueMusic — Então o que você acha que o levou a querer fazer a sua biografia?
Guinga — Bom, aí entra um orgulho, pela qualidade da minha música. Porque eu fico pensando que o cara olhou pra mim e, com o senso jornalístico dele, vislumbrou em mim uma possibilidade de fazer parte da história da música popular brasileira, e resolveu sair na frente. Ele está apostando no que está vendo, sem saber se isso pode se concretizar ou não. É um vislumbre. É o mesmo caso do songbook das minhas músicas, que está sendo feito pelo pessoal da Uni-Rio.
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Carioca que trocou o subúrbio pelo litorâneo Leblon — bairro onde vive boa parte da MPB —, Guinga cultiva hábitos pouco ortodoxos, como lavar o chão de casa depois que as pessoas vão embora, por causa da sujeira dos sapatos, ou caminhar enormes distâncias, para evitar o trânsito. Gosta de cinema, mas não vai assistir a um filme há quatro anos. É um dos maiores violonistas do país, mas diz que seu sonho é ter um bom violão e um bom case (caixa) para guardá-lo. Além disso, não usa pijama nem chinelo, por causa do trauma de uma doença na infância, que o obrigou a passar um mês de cama. Não mexe com computador e nem costuma ouvir CDs em casa, só rádio.
Em entrevista a CliqueMusic, Carlos Althier de Souza Lemos Escobar fala sobre fama, parcerias, influências musicais, novos violonistas e, claro, o novo disco, Cine Baronesa
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CliqueMusic — Cine Baronesa é o seu quinto disco solo. Como ele se insere na sua discografia?
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CliqueMusic — Você só começou a gravar músicas instrumentais no seu terceiro disco, Cheio de Dedos, certo?
Guinga — Eu sempre fui um compositor de canções, mas encontrei uma maneira de botar pra fora minha vontade de ver as coisas de uma maneira instrumental. Sou um compositor de canções, mas sempre gostei muito da música instrumental. Na realidade, eu sempre ouvi mais música instrumental do que canção. Ouvi muita canção, sou um compositor de canções, inclusive é como eu sou melhor compositor, mas tentei viabilizar também a linguagem instrumental. No Cheio de Dedos eu tinha vontade de saber como seriam minhas músicas tocadas instrumentalmente, porque até então só tinha gravado canções, e aí eu gostei. Gostei tanto que repeti a dose no Suíte Leopoldina, mas praticamente hoje posso dizer que encerro — quer dizer, uma coisa que se aprende nos cursos de medicina e odontologia é a não dizer "nunca" nem "sempre" — mas de agora em diante quero que meus discos venham mais com canções. Porque o negócio do instrumental nos meus discos foi para tentar viabilizar o meu trabalho fora do Brasil.
CliqueMusic — E viabilizou?
Guinga — Sim, eu fui à Europa três vezes seguidas, sempre chamado para projetos instrumentais. De certa forma, a música instrumental é uma linguagem universal, que todo mundo entende. O cara pode até ouvir a letra sem entender, gostar do som... eu fui fazer show instrumental na Europa mas cantei também.
CliqueMusic — Mas as suas músicas, mesmo as que têm letra, são bastante gravadas por grupos instrumentais, como por exemplo Di Menor (gravada pelo Quinteto Villa-Lobos
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Guinga — É verdade. No disco do Quinteto Villa-Lobos
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CliqueMusic — Este ano completam-se dez anos da gravação do seu primeiro disco (Simples e Absurdo). Apesar de você tocar e compor profissionalmente desde os anos 70, na década de 90 houve um boom de gravações de músicas suas por outros intérpretes.
Guinga — É verdade, nos anos 80 eu quase não fui gravado, fiquei mais esquecido. Agora, outro dia recebi a notícia que nos Estados Unidos quatro cantoras americanas gravaram músicas minhas este ano, e eu nem sabia. É ruim porque a editora não computa e eu não recebo um tostão. Nem sei o nome das cantoras, na verdade. Eu preciso ser gravado, porque é a maneira de a obra ficar, e também ajuda um pouquinho na arrecadação dos direitos autorais. Você vê, agora está fazendo dez anos do meu primeiro disco, e eu estou no quinto. Mais o que a Leila Pinheiro gravou [Catavento e Girassol
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CliqueMusic — São cerca de 150 gravações de músicas suas, incluindo os seus próprios discos.
Guinga — 150? É bastante, eu acho. Pode não ser tanto em número, mas conta pela qualidade, né? Vê o Dorival Caymmi, por exemplo, parece que ele tem 80 e poucas músicas compostas, e é um gênio, um dos maiores feras do Brasil de todos os tempos. Então o que conta é a qualidade. O Tom Jobim, por exemplo, foi começar a gravar com 35, 36 anos. Cartola foi gravar com quase 70. Então é legal ser gravado, e ajuda na pontuação dos direitos autorais.
CliqueMusic — Que devem ter aumentado bem nos últimos dez anos...
Guinga — De vez em quando a arrecadação melhora, à medida que vão gravando dá uma levantada, o pessoal toca em shows, às vezes. Eu preciso, porque hoje em dia eu vivo disso.
CliqueMusic — E o consultório?
Guinga — O consultório foi ficando em segundo plano, por causa da música, principalmente nos últimos 5, 6 anos. E eu propositadamente fui me dedicando menos e menos ao consultório, então hoje em dia eu não posso viver só do consultório. Eu vivo também do consultório. Eu quis viver de música também, o que é uma opção meio louca, diminuir a odontologia para viver de música, mas enfim.
CliqueMusic — Mas durante um bom tempo você viveu mais da odontologia.
Guinga — Muito mais, durante uns 16 anos vivi só de odontologia, e ganhava bem melhor do que ganho hoje. Agora eu ganho menos, mas estou mais feliz. A música é algo que a gente nunca sabe, de repente pode dar uma porrada boa aí e render uma boa grana, tem dessas coisas. Por exemplo, eu casei com dinheiro de música.
CliqueMusic — Como assim?
Guinga — Graças à Valsa de Realejo
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CliqueMusic — Você consegue um bom espaço nos jornais e publicações especializadas, os músicos falam de você, gravam suas músicas, mas você nunca aparece na televisão ou toca no rádio?
Guinga — No Rio, não toco nada. TV também, nem pensar. Uma vez eu fui apresentado ao Oswaldo Montenegro, falaram para ele "este aqui é o Guinga", e ele disse "Guinga? Você é o desconhecido mais conhecido do Brasil!". Tem muita gente que nem imagina como eu sou mas já ouviu falar do meu nome, conhece as minhas músicas. É uma coisa toda pela contramão, mas que deu certo.
CliqueMusic — Alguns letristas de MPB se ressentem disso, de serem pouco lembrados e pouquíssimo conhecidos, de todo mundo conhecer as músicas mas não saberem como é a cara da pessoa que escreveu a letra. Você sente falta de mostrar mais a cara?
Guinga — Bem, agora isso já diminuiu em mim. A minha vida é diferente da dos meus parceiros, do Aldir e do Paulinho Pinheiro, porque eu vou para o palco. Eles ficam mais dentro de casa fazendo as letras. A arte deles é na alcova, eles podem produzir muito e continuar ali. Mas o músico, ainda por cima se canta um pouquinho, como eu canto, isso quase não chega em mim.
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Guinga inventa novas possibilidades para o violão
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Guinga — Eu me vi obrigado a cantar. Não canto merda nenhuma, não me considero cantor, sei que não canto bem, mas ao mesmo tempo eu acho que sou a pessoa que dá mais fielmente o semblante da minha música. Geralmente o compositor é assim. O maior exemplo é o Nelson Cavaquinho. Se você for analisar a voz do Nelson, não era bonita, mas eu adoro ele cantando as músicas dele, assim como adoro o Chico cantando as músicas dele... o melhor intérprete de Chico é Chico, do Tom é o Tom, do Cartola é o Cartola e por aí vai.
CliqueMusic — Mas tanto Nelson Cavaquinho quanto Cartola quanto você passaram a ser conhecidos na voz de outros intérpretes, não começaram cantando suas próprias músicas.
Guinga — É verdade, eu canto por uma necessidade de poder me manifestar, de ter de ir para o palco trabalhar, você acaba sendo obrigado a cantar. E também para se viabilizar como produto artístico, porque um compositor que ninguém conhece a cara, que ninguém ouve a voz, está fadado a ter mil músicas gravadas e ninguém saber quem é. Os letristas que você falou, o Fernando Brant, por exemplo, é uma cara pouco conhecida. Há uns três anos ele falou comigo no aeroporto, disse que gostava das minhas músicas, e eu disse "muito obrigado, mas me desculpe, eu não estou sabendo quem é você". Quando ele falou "eu sou o Fernando Brant" eu quase morri de vergonha, porque é claro que eu sei quem ele é, e sei muito, mas não conheço a cara. Nunca o vi na televisão, nunca fixei a imagem, não é culpa minha, e nem dele, mas é porque a televisão não se interessa por esse tipo de artista. A TV só se importa com carinhas bonitas. E só até uma certa idade, depois que uma cantora passa de uma idade não aparece mais. Não precisa ter boa voz, só um rostinho bonito. Então ninguém se interessa por um cara como eu na televisão. Nunca fiz nada na TV, nunca me chamaram para nada.
CliqueMusic — Mas você se torna mais conhecido porque faz muitos shows pelo Brasil.
Guinga — Ah, sim, shows demais, viajo muito. Em jornais eu apareço muito, graças a Deus. O que eu tenho de matéria sobre mim em casa, que saiu nesta década... Muita coisa.
CliqueMusic — E as pessoas te reconhecem na rua, te param, pedem autógrafo?
Guinga — Pouco, mas muito mais do que eu pensava que poderia ser. Na rua, caminhando aqui pelo Leblon, Ipanema, pela praia, é muito comum as pessoas pararem, falarem comigo, darem um até logo. Tem muita gente que eu nem sei quem é, com quem eu já devo ter falado em alguma ocasião, e que fala comigo com a maior intimidade, aí eu respondo. Às vezes buzinam, no carro, ou falam comigo no aeroporto, é muito comum. Não é uma tônica na minha vida, mas eu curto isso, porque é algo que está sendo feito em doses que eu posso curtir. Acredito que se fosse feito de uma maneira que acabasse com a minha privacidade ou que eu tivesse que parar de 5 em 5 minutos eu ia ter pavor disso.
CliqueMusic — Você é tímido?
Guinga — Sou. Muito. Já pensou que terrível, não poder ir ao cinema, ter que ir caracterizado, como o Roberto Carlos ia... Não que eu esteja me comparando com ele, mas imagino que deve ser horrível. Uma das raras pessoas que eu vejo andando pela rua numa boa é o Chico Buarque. Ele anda pela praia, se tiver de ir na farmácia, ele vai, já o encontrei uma vez na Sendas do Leblon... Isso não é muito comum, um cara com a notoriedade do Chico, o compositor mais famoso do Brasil. Tem outros que com muito menos fama já tiram onda de ficar dentro da limusine, com seguranças. No fundo esses caras adoram ser parados na rua, mas tiram uma onda de ser o contrário.
CliqueMusic — É bom, então, essa certa notoriedade?
Guinga — É. Muito pior do que te pararem na rua a todo momento é ser um artista anônimo. Mesmo quando as pessoas te alugam, porque às vezes alugam mesmo. Uma vez eu estava andando pela rua, e ouvi um cara gritando "Guinga! Guinga! Guinga!". Quando eu olhei ele disse "eu te conheci no Rio Grande do Sul, vi teu show, achei muito legal". Depois ele falou "Guinga, pelo amor de Deus, eu acho que eu desloquei o braço, me leva no hospital, que eu não conheço nada por aqui!". Eu levei o cara no [hospital] Miguel Couto, acabou com a minha caminhada (risos). Pelo lado humano, eu tinha que tomar uma atitude daquela, o cara estava mal, cheio de dor, não conhecia ninguém, me reconheceu... Depois estive com esse cara em Porto Alegre, ele foi ver o meu show, e ficou meu camarada. Então é o que eu estava dizendo, muito pior do que te pararem na rua por você ser uma pessoa pública, as pessoas gostarem de você e quererem desfrutar um pouco de você, é ser um anônimo. Eu vivi anônimo a minha carreira quase toda.
CliqueMusic — Então você gosta da fama.
Guinga — Lógico. Mas veja bem, não é que eu corra atrás da fama nem que seja um escravo da fama. Mas eu sou um cara que adora a fama, e quem disser o contrário está mentindo. Não acredito no famoso que diz que tem raiva da fama. O cara fez tudo na vida para ser famoso, e quando vira famoso diz que tem raiva da fama? É uma demagogia. Quem é famoso é porque fez tudo pra ser famoso, é porque quis ser famoso. Até o bandido que fica famoso, ele faz pelo caminho do mal porque quer uma notoriedade, quer chamar a atenção. Então não me diga que o cara que é famoso na música tem raiva disso. Ele fez tudo para ser famoso! Já imaginou um artista morrer anônimo, como Van Gogh? O que esse cara não deve ter sofrido na vida, com o anonimato?
CliqueMusic — E agora você vai ser biografado...
Guinga — Pois é.
CliqueMusic — O jornalista Mario Marques está escrevendo sua biografia, a quantas anda o livro?
Guinga — Já está quase tudo pronto, mas pelo que eu sei o Mario ainda tem que falar com pessoas muito importantes na minha vida, como a minha mulher e as minhas duas filhas. Mas comigo e a maioria das pessoas ele já falou. Pelo que sei já está quase pronto, só falta o tête-à-tête com essas pessoas.
CliqueMusic — Ter uma biografia aos 50 anos já está um passo além do que estávamos falando sobre fama e ser parado na rua, não?
Guinga — Essa coisa da biografia me deu duas sensações: a primeira foi maravilhosa; a segunda foi um pouco sombria, porque as pessoas só são biografadas depois de mortas, ou então quando já estão bem perto... Mas enfim, não se pode ficar baseado nessa regra, nada contra eu ser a exceção, e aos 50 anos já estar biografado, mas normalmente o biografado em vida tem que ser um cara muito famoso, o que não é o meu caso, perto do que se pode considerar uma pessoa famosa.
CliqueMusic — Então o que você acha que o levou a querer fazer a sua biografia?
Guinga — Bom, aí entra um orgulho, pela qualidade da minha música. Porque eu fico pensando que o cara olhou pra mim e, com o senso jornalístico dele, vislumbrou em mim uma possibilidade de fazer parte da história da música popular brasileira, e resolveu sair na frente. Ele está apostando no que está vendo, sem saber se isso pode se concretizar ou não. É um vislumbre. É o mesmo caso do songbook das minhas músicas, que está sendo feito pelo pessoal da Uni-Rio.
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