Hermeto, o alquimista sonoro de todas as emoções

Em seu primeiro show no Brasil depois da morte da esposa, Hermeto Pascoal provoca comoção ao cantar junto com o público uma letra inédita

Nana Vaz de Castro
20/11/2000
A sala Funarte-Sidney Miller (RJ) foi pequena para tantos fãs. A gigantesca fila – que começou mais de três horas antes do horário anunciado para o espetáculo – era formada majoritariamente por jovens, muitos deles estudantes de música, com seus instrumentos a tiracolo, ou profissionais. Uma verdadeira legião de admiradores que segue seu guru, Hermeto Pascoal, em seus shows, e que lotou a sala, ocupando inclusive todos os lugares no chão.

Não é pra menos. Show de Hermeto é assim: tem que ir em todos, porque um nunca é igual ao outro. O “pretexto” para este – que, em curtíssima temporada, se encerra amanhã (terça) às 18h30 – é o livro Calendário do Som, lançado recentemente, com partituras de músicas compostas por Hermeto durante um ano: uma música por dia – incluindo 29 de fevereiro – para homenagear todos os aniversariantes do mundo. Neste ano o multiinstrumentista se apresenta ainda em Brasília (de 14 a 17 de dezembro com o violonista Marco Pereira e o bandolinista Hamilton de Holanda) e Fortaleza (dia 21/12). Em janeiro, tem um show agendado dentro de uma gruta (!), em Minas Gerais, acompanhado por uma orquestra filarmônica.

No fundo, essa legião de hermetófilos tinha um motivo a mais para lotar a sala Sidney Miller. Foi a primeira apresentação do músico alagoano desde a morte de Ilza, sua esposa e companheira da vida inteira, ocorrida no Rio no último dia 1º, quando ele estava em turnê na Europa. Mas com o apoio da platéia e dos amigos – Mauro Senise, Paschoal Meirelles, Ithamara Koorax, Pedro Luís, Itiberê Zwarg e sua Orquestra Família eram alguns dos presentes – Hermeto conseguiu transformar a emoção em som. Como sempre.

Logo que entrou no palco e sentou-se ao piano, pediu ao operador de som que tocasse mais uma vez a campainha que indica o início do espetáculo. “Agora fica segurando o botão, por favor”. Pronto, rapidamente o irritante zumbido se tornou um baixo pedal sobre o qual Hermeto saiu improvisando. Tudo é som, sempre.

Brinquedos sonoros
O momento pianístico foi breve mas intenso. Em seguida levantou-se e foi e direção à mesa cheia de instrumentos e apetrechos. “Agora vamos brincar”, convidou o bruxo. E foi uma festa de brinquedinhos de borracha que apitam, chaleira, copo d’água, bomba de encher bola de festa, embalagem de xarope. Tudo é coisa musical, como diria Aldir Blanc a respeito de Hermeto. Houve ainda momento para um apelo aos pais: “Não comprem para seus filhos brinquedos que não fazem barulho. Esses bichinhos de pelúcia são muito fofinhos, mas não produzem som algum”. E tome mais brincadeira, com a escaleta, a flauta baixo e a sanfona de oito baixos, seu primeiro instrumento, de onde tira ritmos e sons inebriantes.

Mas a emoção mais forte estava guardada para o final. Hermeto escreveu esta semana uma letra para sua composição Menina Ilza, e pediu que todos cantassem com ele. A música já fora composta antes – a primeira gravação é do trompetista Marcio Montarroyos, de 1977 ouvir 30s – e em suas últimas apresentações, quando Ilza já estava bastante doente, Hermeto encerrava os shows com ela, pedindo que a platéia cantarolasse a melodia, sem letra.

A poesia havia sido distribuída na entrada do teatro para cada um dos presentes. Hermeto chamou ainda ao palco a cantora Ithamara Koorax, que estava na platéia, com o intuito de ajudar o público. Mas – bruxarias à parte – todos pareciam já ter ensaiado muitas vezes antes. Menina Ilza saiu de primeira, para espanto do próprio compositor, que, controlando a emoção, disse: “A tristeza não nasceu pra mim. E pela visto, nem pra vocês. Olha aí, a Ilza está voando por aí…”

Menina Ilza

Agora eu sei
Que você voltou
Porque foi ele
Quem lhe convocou

Agora eu sei
Que você voltou
Porque foi Deus
Quem lhe convocou

O meu coração
Vibra emoção
Cheio de saudade
Fiz esta canção

Não vou sorrir
E nem vou chorar
Eu sei que agora
É que vou te amar

É pensando em ti
Que o som vai rolar
Com panela e tudo
Pra você quebrar

Menina Ilza
Foi passear
E com certeza
Ela vai voltar

Quando ele chama
Não tem jeito não
Nem a fé segura
A sua razão

Menina Ilza
Foi passear
E com certeza
Ela vai voltar