História e glória (?) de um estilo maldito

Prossegue o texto especial de Ricardo Schott sobre a música brega

12/09/2002
Antes de tudo, um aviso: o som que se conhece como brega hoje em dia é uma barafunda sem fim, uma zona dos diabos. Nos anos 50 e 60, as primeiras iniciativas em se fazer rock no Brasil eram incluídas no mesmo escaninho da música de "baixo nível", ou "cafona", como se diria nos anos 60. Raul Seixas, por exemplo, quando começou a fazer rock na Bahia, dançava com as empregadas domésticas de Salvador e freqüentava festas do pessoal de uma transportadora de lixo local - enquanto o segmento intelectualizado da cidade seguia os shows de Caetano, Gil, Gal e Bethânia pela cidade ë freqüentava o Teatro Vila Velha. Numa época em que a politização e a "esquerdização" da música brasileira (a própria sigla MPB já soa meio partidária, aguerrida, engajada) eram buscadas, a Jovem Guarda era destratada e considerada como alienada e alienante. Paralelamente a isso, a ditadura era considerada quase que como um acontecimento interplanetário por alguns artistas populares - e solenemente ignorada pelo pessoal da Jovem Guarda, que eram um pouco mais bons de vida e atingiam até o público universitário.

Discos importantes de artistas como Incríveis, Roberto Carlos, Wanderléia, Eduardo Araújo e outros foram ouvidos como música brega. Eram discos de rock - e vários desses artistas fizeram discos psicodélicos e arrojados entre os anos 60 e 70, o que só dá um ar maior de injustiça a isso tudo. Como você acha que estaríamos vendo nossos Los Hermanos, se tivessem surgido nos anos 60?Eles não estariam num patamar melhor que o dos Fevers, por exemplo, e seriam forçados a gravar milhares de Annas Júlias para vender discos. A prova disso era ver que tais LPs eram lançados pelos segmentos "populares "das gravadoras (selos como Polydor e RCA Vik).

O que é brega, afinal?!
Nos anos 70, após um breve estouro soul - que também entraria no rol brega - apareciam artistas como Benito di Paula e Luiz Ayrão, além da dupla Antonio Carlos & Jocafi, que faziam uma espécie de samba grandiloqüente, com vocais derramados, letras românticas e uma cara mais popularesca que a do samba de raiz feito por gente como Cartola. Geralmente esse tipo de música é colocada ao lado do brega, mas não é assim que a banda toca. Na época, a mídia tentou criar o termo "sambão jóia", para identificar esse time, que era formado por nada mais nada menos que os pais espirituais de Alexandre Pires e do Raça Negra. Tudo o que se fez em pagode na década de 90 era filho de músicas como Retalhos de Cetim, de Benito di Paula e Porta Aberta, de Luiz Ayrão. Era um samba romântico, derramado e feito, no mais das vezes, com influências de rock e rhythm'n blues.

Ainda assim, é interessante notar que alguns dos artistas desse setor são, geralmente respeitados. Antonio Carlos & Jocafi compuseram Você Abusou, gravada por Maria Creuza. A música foi um sucesso tão estrondoso que o jovem cantor Stevie Wonder, à época em férias no Brasil, ouviu tanto a música que acabou decorando a letra (até hoje, quando perguntam a Stevie sobre suas lembranças do Brasil de 1971, ele acaba dando um jeito de inserir o refrão "você abusou, tirou partido de mim, abusou"). Nos anos 90, a dupla gravou um CD com letras de Jorge Amado musicadas e nos seventies, fazia trilhas e mais trilhas para novelas da Globo - como a de O Primeiro Amor, dominada por forrocks e sambas-rocks como Perambulando (a tal música que falava em "fui dançar naquele brega") e Hey Shazam. Luiz Ayrão, naquela época, era visto como sambista e chegou a ter músicas censuradas, como Treze Anos (uma espécie de Apesar de Você mui peculiar) e Meu Caro Amigo Chico, feita para o próprio Chico Buarque.

Nos anos 70 e 80, quando aparecia um artista com um trabalho popular, de canção brasileira, eclético, e que ainda por cima não fosse pertencente a nenhum grupinho ou panelinha, virava brega. Se hoje, no rol dos inclassificáveis, encontramos gente como Paulinho Moska e Ana Carolina (que já foram chamados de bregas por causa de momentos mais românticos de suas obras), nos anos 70/80, eles se proliferavam. O cantor niteroiense Dalto, por exemplo, teve seu primeiro hit single em 1974 com Flash Back e foi logo colocado nesse meio. Quando a soul music surgiu no Brasil, artistas como Hyldon e Cassiano foram parar nesse meio com rapidez - por trás de tudo estavam os eternos Robson Jorge e Lincoln Olivetti, que também foram responsáveis pelas carreiras de Claudia Telles e Ronaldo Resedá, one-hit wonders da época.

A recompensa - o reconhecimento público rápido - foi acompanhada de um ônus letal: os trabalhos dessa turma nunca foram devidamente levados a sério. Vôos mais ousados eram abortados pelas gravadoras e discos saíam para cumprir contrato - qualquer semelhança com os já citados Los Hermanos não é mera coincidência. Nesse rol, tardiamente, entrou o anglo-carioca Ritchie, sucesso nos anos 80 com Menina Veneno. Ritchie, nascido Richard Court, enfrentou a pecha de "cantor de empregada doméstica", foi sugado "como o caroço de uma cereja marrasquino" (para usar uma expressão de Kurt Cobain, outro que se atormentou até o fim com as maquinações do sistema), enfrentou boicotes e teve esfregada na sua cara a obrigação de compor outro hit single.

Foi desse jeito que o brega chegou aos nossos tempos, sem saber se é realmente amado ou odiado - e pela vendagem dos discos, deve ser mais amado. Único gênero capaz de unir artistas tão díspares quanto Incríveis, Zé Ramalho, Caetano, Ritchie, Hyldon, Roberto Carlos e outros, o brega foi um termo que surgiu do preconceito que até as camadas populares têm com elas próprias (e que frutifica em parte das camadas mais abastadas) e da própria existência de uma "casa grande" ë de uma "senzala" na música popular - sendo que essa própria senzala se divide em partes distintas. É de "bom tom" adorar Cartola e Paulinho da Viola - sendo que o samba sempre foi um gênero dos mais renegados, historicamente - mas é feio e de mau gosto ouvir Fábio Jr., Odair José, Waldick Soriano e outros. Talvez a maior resposta a isso tudo seja o cantor cearense Falcão, rei da breguice existencial e intelectualizada, cuja gozação maior foi verter para o inglês canções como Fuscão Preto e Eu Não Sou Cachorro Não. Um dos discos mais arrojados do cantor teve o sintomático título de A um Passo da MPB (1997). Na foto da contra-capa do CD, Falcão aparecia de muletas. Uma imagem que vale mais que mil palavras.