Inezita Barroso: com todo fôlego, aos 76 anos de idade

Cantora lança disco só com canções sobre São Paulo e outro da série do programa Ensaio, prepara biografia e estréia coluna em jornal virtual

Rodrigo Faour
11/04/2001
Patrimônio nacional, Inezita Barroso é uma lenda viva em plena atividade. Cantora de portentosos dotes vocais — um timbre grave e forte ainda viçoso aos 76 anos —, ela atua também como divulgadora da música regional, dos temas folclóricos e de composições entre o erudito e o popular, há praticamente 50 anos na ativa. Foi ainda menina que despertou para a música. Aos sete anos, pediu aos caipiras que viviam nas fazendas de sua família que lhe ensinassem a tocar viola — o primeiro dos vários instrumentos que dominaria. Mais tarde, Inezita fez o curso de biblioteconomia na USP e leu tudo o que pôde sobre cultura brasileira. Em 1953, já casada com um homem que felizmente a incentivaria a seguir a profissão de cantora — algo malvisto pela sociedade na época —, estourou com A Moda da Pinga.

Empunhando sua viola (ou seu violão) e sempre com porte de rainha, Inezita gravou dezenas de discos, vendeu muito e jamais se curvou às concessões da indústria do disco. Mantém-se fiel ao estilo que criou há meio século. Como se não bastasse, atuou em sete filmes e foi também uma das pioneiras cantoras a ter um programa de TV, atividade que mantém até hoje. Há 20 anos, ela apresenta o programa de música caipira Viola, Minha Viola que vai ao ar aos sábados, às 22h, e domingo, às 9h, na tela da TV Cultura.

Inezita acaba de lançar dois CDs este ano, ambos gravados ao vivo. O primeiro é o registro do show Perfil de São Paulo (leia crítica e ouça trechos), apenas com músicas de seu estado natal, acompanhado pelo regional de Izaías. O segundo faz parte da série documental A Música Brasileira Deste Século por Seus Autores e Intérpretes (leia crítica e ouça trechos), retirada do programa Ensaio (TV Cultura), que agora chega ao formato CD, intercalando depoimentos sobre sua vida e carreira com seus maiores sucessos. Na surdina, ela também está acompanhando a preparação de sua biografia, escrita pelo jornalista Arley Pereira, e ainda arruma tempo para escrever uma coluna mensal sobre folclore no Jornal (virtual) Movimento, que estréia quinta-feira, dia 12, no endereço www.jornalmovimento.com.

Em entrevista a CliqueMusic, Inezita Barroso conta como venceu os preconceitos de sua época para ser cantora e tocadora de viola. Ela diz que jamais foi padrão de beleza em sua época e que não gosta de se ver no vídeo nem de se ouvir em disco. Também lamenta nunca ter recebido dinheiro das gravadoras por seus discos — certa época, denunciou alguns compositores que se apropriavam de músicas do nosso folclore e assinavam como seus autores. Por fim, Inezita confessa que, apesar dos contratempos, preferia a época em que a TV era toda feita ao vivo, e conta um divertido entrevero com a amiga Aracy de Almeida.

CliqueMusic — Como surgiu a vontade de gravar um CD só com canções sobre São Paulo?
Inezita Barroso
— Estava numa roda de amigos — Paulinho da Viola, Jamelão, entre outros — no restaurante Parreirinha, super tradicional no Centro de São Paulo, onde eu tinha cadeira cativa, mas que infelizmente acabou de fechar. Conversávamos sobre a música de São Paulo e eu disse que existe uma canção que acredito ser um hino de glória à cidade: o Perfil de São Paulo. Até que alguém sugeriu: "Por que é que você não grava um CD só com músicas daqui?" Achei boa a idéia e decidi homenagear não apenas a cidade, mas o estado inteiro, com algo de música caipira também, com viola. E esse show ficou uma coisa muito bonita. Então, gravei ao vivo no fim do ano passado, no Bar Supremo, que é um lugar muito aconchegante, com a participação do regional do Izaías, que já me acompanhou muitas vezes. E esse show faz muito sucesso sempre, todas as vezes que nos apresentamos.

CliqueMusic — E você gosta mesmo de São Paulo? Por que você já contou que também adora litoral...
Inezita Barroso
— Gosto, não, eu amo São Paulo! Apesar de adorar praia. Mas não tenho sorte para ir à praia. Tenho um apartamento no litoral, em Itararé, em São Vicente. Deixo tudo prontinho para viajar, mas no dia seguinte cai uma chuvarada (risos). Vivi a vida inteira aqui, tenho muitos parentes. A família da minha mãe é de fazendeiros do interior e a do meu pai é do litoral paulista — não sei onde é que eu fico (risos). Várias vezes tentei mudar mas aparece sempre contrato de disco, show, programa de TV aí tenho que ficar aqui...

CliqueMusic —- De onde vem essa sua loucura por música? Quem cantava na sua família?
Inezita Barroso
— Minha avó paterna tinha voz idêntica à minha, de contralto, e cantava ópera, que era o gênero bonito no tempo dela. Ela deu até recitais e chegou a cantar em teatro. Acontece que meu avô morria de ciúmes dela. Um dia, ela já estava com tudo ensaiado para se apresentar num concerto beneficente, o teatro estava cheio e meu avô virou-se para ela e disse: "Você não vai porque está muito bonita e bem vestida". Isso era no começo do século, imagine o machismo... E ela respondeu: "Está bem eu não vou, mas você também nunca mais vai me ouvir cantar nem tocar piano". E pegou a chave do piano, foi à praia e a jogou no mar, porque o que ele fez foi uma coisa muito feia — os ingressos estavam todos vendidos. Ela ficou com muita vergonha... Pois bem, meu avô acabou morrendo sem ouvi-la cantar ou tocar. Depois disso, a família veio do Pará para Ubatuba, no litoral paulista. E o piano veio junto. Eu devia ter meus 12, 13 anos. Quando ela cantou, fiquei muito emocionada, fiquei com os olhos cheios de lágrimas.

CliqueMusic — E o lado sertanejo, veio de onde?
Inezita Barroso
— O lado sertanejo vem da minha mãe. Meus tios eram fazendeiros no interior de São Paulo. Cada um de uma região do estado — Campinas, Itapira, Mogi Mirim — e eu ia com minha família passar férias nas fazendas deles. Víamos toda aquela cultura do interior... folias de reis, festas de São João... E pequenininha, já queria tocar viola. A família não me incentivou porque era feio — se violão já era coisa de vagabundo, imagine viola. Eu tocava escondido. Pedia para o caipira: "Deixe eu experimentar". Então, aos sete anos, comecei a tocá-la, mas ninguém sabia. Na verdade, sou autodidata na viola e no violão. Quando já tocava violão direitinho, meu pai quis que eu estudasse música direito e me matriculou numa aula de piano. Fiz três anos de piano clássico, cheguei depois até a fazer um recital. Depois disso, pensei: "Quer saber de uma coisa? Agora chega, vou voltar para o violão e para a viola, que é o que eu gosto (risos). A primeira viola ganhei já com 19 anos. Tudo porque naquela época já havia esse preconceito, essa mania de que caipira é horrível, jeca, doente, sem dente... É uma briga minha de muitos anos a de desfazer essa imagem.

CliqueMusic — Você teve problemas para iniciar sua carreira de cantora?
Inezita Barroso
— Primeiramente, cantava em casa, em quermesses, aniversários, acompanhando-me ao violão. Mas, quando falava em seguir profissionalmente, meus pais diziam: "De jeito nenhum!" Eles achavam que ganhar dinheiro como cantora era muito feio. Mas eu amava, né? Lembro-me que o primeiro presente que eu amei de verdade foi um radinho. Aquilo abriu um mundo para mim. Era a época de Francisco Alves, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Dalva de Oliveira... Ficava ouvindo rádio escondido até tarde... Outro grande impulso a essa minha vocação se deu quando tinha meus 14 anos e minha avó paulista foi morar no Rio porque tinha um filho senador. Foi quando fui passar minhas primeiras férias lá. Assisti àqueles blocos de tamanco no meio da rua, em Copacabana, na Avenida Atlântica. Já pensou o barulho lindo que faziam 50, 80 caras dançando de tamanco na rua? Isso ficou marcado na minha cabeça.

Outra coisa que me marcou nessa viagem foi ter ido ao Cassino Atlântico. A minha família gostava de jogar. Como eu tinha 14 anos, me fantasiaram de gente (risos), com sapato de uma tia, batom de outra e vestido de mais outra. Fiquei estranhíssima, mas com aparência de mais velha. Foi lá que tive a honra de assistir a Carmen Miranda e o Grande Otelo. Fiquei muito emocionada e foi engraçado porque o pessoal foi jogar, demorou mais de uma hora para voltar à mesa e eu puxei um ronco no sofá. Foi horrível! (risos) Quando chegaram, queriam me matar. Voltei para São Paulo já com essa idéia de ser cantora. No Rio, ainda tinha umas cantoras "de família", mas aqui em São Paulo isso não era aceito. Consegui vencer porque aos 18 anos me casei com um cearense e a família dele era totalmente musical e me incentivou. Acabei indo para a Rádio Nacional de São Paulo. Mas antes de completar um ano, fui para a Record, porque ela já tinha uma emissora de televisão e eu queria também atuar na TV. Acabei ficando lá por sete anos.

CliqueMusic — Você era cult no meio intelectual nos anos 50, mas também conseguia chegar ao público mais interiorano, caipira...
Inezita Barroso
— Chegava e muito bem. Felizmente eles sempre me aceitaram, mesmo eu não sendo nascida nesse meio. Também nunca tive barreiras com o público esnobe, cheguei a cantar na boate Vogue. Fiz uma temporada grande ali antes de a boate, um local onde se apresentavam também muitos artistas estrangeiros, pegar fogo.

CliqueMusic —- Por essa época quem atuava na Vogue era a Aracy de Almeida. Você conviveu com ela?
Inezita Barroso
— Não especificamente na Vogue. Ela vinha muito a São Paulo. Meu cunhado era Maurício Barroso, ator do TBC, muito amigo da Aracy. Um dia, quando me viu, eu tinha acabado de estrear na TV Record ao lado do cantor e produtor Túlio de Lemos num programa em que eu representava e cantava coisas do Noel Rosa. Logo quem! Ela queria me matar, porque devia achar que eu seria uma concorrente dela! Virou-se pra mim e me chamou de "grã-fininha mascarada" (risos). Isso até morrer, mas brincando, claro, porque ela não tinha raiva de mim. Ela se encontrava comigo e dizia: "Oi, grã-fininha mascarada!" (gargalhadas) Acho um barato criaturas assim bem autênticas. Ela era hilária.

CliqueMusic — Falando em TV, como foi sua experiência com televisão, veículo em que você atua até hoje, está no ar há 20 anos com o Viola, Minha Viola, na TV Cultura...
Inezita Barroso
— Antigamente, fazer televisão era muito mais emocionante porque era tudo ao vivo. Lembro-me que num dos meus primeiros programas, tinha que cantar cinco números, com cinco cenários, cinco roupas, cinco chapéus... tudo de acordo com os gêneros das músicas. Então eu corria de um cenário para o outro. Era uma loucura! Não dava tempo de trocar de roupa, então eu colocava uma em cima da outra. Começava bem gorda, depois ia tirando as roupas, uma por uma (risos). Fazia uma gaúcha, uma nordestina, uma paulista... no fim, ficava exausta. Cada uma tinha um cenário especial com objetos da região... com suas respectivas plantas típicas e às vezes até bichos de verdade.

CliqueMusic — Havia muitos imprevistos nessa época da TV ao vivo...
Inezita Barroso
— De fato, era perigoso fazer TV ao vivo. Acontecia de eu entrar num cenário caipira e estar com a roupa de Minas, por exemplo. Aí aparecia o nome errado da música na tela... Às vezes, enguiçava um zíper, e tinha que arrebentar a roupa toda para chegar a tempo no outro cenário. Mas era muito bom! (risos) Também fiz muitos programas Viola, Minha Viola, já na TV Cultura, ao vivo no interior de São Paulo. Havia no mínimo três mil pessoas na rua. No meio do programa, entrava cachorro no palco procurando o dono (risos). Ou então, no meio de uma música triste, o vendedor de algodão doce aparecia com seu carrinho e entrava fazendo barulho. Isso, fora buzina de carro, criança chorando porque tinha se perdido... Aí, tinha que se parar de cantar para anunciar que a criança estava ali. Mas era uma forma de fazer TV mais quente... Era ao vivo.

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