Itiberê Zwarg e a herança de Hermeto Paschoal

Músico e compositor que acompanhou o bruxo por anos desponta como líder da Itiberê Orquestra Família

Marco Antonio Barbosa
02/11/2001
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Por mais prolífico e produtivo que seja Hermeto Paschoal, nem mesmo ele poderia conceber uma prole de nada menos que 30 netos. Filhos estes tão aplicados que levam as lições do avô ao ponto de um saudável radicalismo que não enxerga limites. Observando tudo, um filho mais velho que não está lá para vigiar ou pôr amarras - mas sim deixar a liberdade fluir ainda mais solta. Paralelos como estes vêm à mente na hora de classificar o trabalho da Itiberê Orquestra Família, grupo criado e supervisionado pelo músico Itiberê Zwarg, multiinstrumentista, compositor e discípulo de Hermeto. Por todas essas características - o "apadrinhamento" célebre, o tamanho da formação, seu método de trabalho incomum e sua universalidade rítmica e harmônica - não chega a ser surpresa a notoriedade que o grupo alcançou com o lançamento de seu disco de estréia, Pedra do Espia ouvir 30s (Jam Music). "Esta é a terceira geração dos descendentes do Hermeto. Eu me considero filho musical dele, e a importância que ele teve para mim, está tendo para estes netos, que são os músicos da Orquestra Família", narra Itiberê Zwarg, classificando a influência do bruxo do Jabour sobre sua música.

Antes de prosseguirmos, é preciso parar e observar a absoluta peculiaridade da Orquestra Família em vários aspectos. Primeiro, trata-se de uma orquestra de verdade, mas não uma orquestra comum; aos usuais cellos, clarineta e violinos, juntam-se guitarra elétrica, viola caipira, cavaquinho e bateria. O grupo não toca baseado em partituras - pelo contrário, a música primeiro nasce, depois é passada para o papel. Como todo mundo toca de cor, as composições (todas de Itiberê) estão em processo de constante evolução. "Partimos do som, da referência auditiva, ao invés do método tradicional - que usa a visão, o olhar cravado na partitura. As músicas amadurecem muito rápido. Ensaiamos muito, dando atenção a cada uma das seções da orquestra", explica Itiberê. "Fazemos separado a parte dos sopros, depois as cordas, depois a cozinha rítimica." Com a formação presente em Pedra do Espia, a IOF já está ensaiando há um ano e meio, num casarão em Laranjeiras (RJ).

Como diferencial extra - e ainda precisa? - a idade média dos músicos é surpreendentemente baixa. "São todos muito jovens, na casa dos 20, 22 anos", conta Itiberê. Acho que a música brasileira passa por um período maravilhoso, quando pode-se contar com gente jovem como eles, livres de qualquer influência e com a cabeça aberta para a música universal." As músicas vão surgindo segundo o método de corpo presente, apreendido por Itiberê no contato com Hermeto. "Se eu aprendi algo com ele, foi a capacidade de compor na hora, burilando as músicas ali no contato com os instrumentistas. De tanto olhar para ele, um dia falei para mim mesmo: 'Taí, acho que consigo fazer igual'." O que sai dessas reuniões de corpo presente é delirantemente variado. Em Pedra do Espia há chorinho, forró, samba, valsa e muito mais. Tudo 100% instrumental. "As pessoas - tanto os compositores quanto os ouvintes - se restringem muito a gêneros e ritmos, querem classificar tudo. Nós somos malandros, misturamos tudo", afirma Itiberê.

O método free de composição leva a uma produção prodigiosa. Tanto que nos shows de lançamento do disco - que por sinal é duplo - apenas cinco dos 16 temas gravados no álbum estão no set list. O resto é só de músicas inéditas. "Temos repertório pronto para gravar mais outro disco duplo, se quisermos", diz Itiberê. "Se eu não segurar os músicos, sai uma música nova a cada ensaio!" O processo de gravação é definido pelo líder da Orquestra como "meter as caras". "Entramos direto e fizemos tudo muito rápido, por causa da quantidade de ensaios."

Quem faz essas afirmações é um músico de 51 anos, que tem no currículo 24 anos de parceria com Hermeto Paschoal, espalhada por oito álbuns do bruxo. "Ele fez totalmente a minha cabeça e também a de várias gerações posteriores. A amplitude e a universalidade do trabalho dele são contagiantes, ele quebrou todas as estruturas possíveis", fala Itiberê sobre seu mestre. A própria criação da Orquestra Família se deve a Hermeto. Itiberê conta: "Mais ou menos em 1995, o grupo em que eu tocava com Hermeto se desmontou, os ensaios foram rareando e nós passamos a ter tempo ocioso. Foi aí que ele (Hermeto) me deu força para montar um projeto próprio. Quando eu comecei, na verdade eu nem sabia no que iria dar."

Deu em uma oficina musical, montada no casarão do Seminário PróArte. "Eram workshops para ensinar a garotada a tocar em harmonia, a conhecer seus instrumentos", lembra Itiberê. "Mas aí foi ficando sério com o tempo. Apliquei neles a mesma influência que o Hermeto teve sobre mim: ele me ensinou a criar, e estou ajudando a eles o mesmo." Mais uma vez, foi o bruxo quem sugeriu que o grupo de Itiberê virasse uma orquestra. "Quando estávamos maduros, parei para pensar num repertório e então fomos em frente. " Depois de fazer uma "caixinha" durante o ano de 2000 para gravar o disco (nas pausas dos ensaios), o grupo foi adotado pela Jam Music, via Jane Duboc - a cantora, uma das sócias do selo. "Já tínhamos gravado um terço do disco quando ela foi assistir a um ensaio e se emocionou muito. Com o contrato, ficamos ainda mais entusiasmados", relata Itiberê.

A celebração desta música universal, sem partituras nem idéias pré-concebidas, é no palco. "O povo ama nos ouvir tocando ao vivo. Tocamos para os alunos de uma escola pública de 2º grau, pouco antes de lançarmos o disco, e foi inesquecível - gritos, aplausos, muito entusiasmo", conta o líder da Itiberê Orquestra Família. "Temos muito espaço para crescermos junto ao público, e acho que a música que fazemos pode ser plenamente entendida pela massa. Não é nem questão de ser otimista - é só observar. Estamos prontos."