Ivan Lins: crítica e auto-crítica de seu passado

Cantor fala sobre o pacote de relançamentos que põe de volta às lojas oito discos seus, gravados entre 1970 e 1988

Marco Antonio Barbosa
06/04/2002
"Eu cantava mal mesmo, forçava a voz. E só fui procurar o auxílio de uma professora de canto a partir de 1994". Quem poderia imaginar que Ivan Lins, com 31 anos de carreira e consagrado nacional e internacionalmente, teria cantado por tanto tempo de forma errada? A prova dos nove pode ser tirada mais facilmente agora, já que o cantor e compositor teve recentemente oito de seus discos relançados pela gravadora Universal Music. A fornada de CDs representa, em parte, a fase inicial da carreira de Ivan, trazendo de volta discos dos anos 70 há muito fora de catálogo (Agora, de 1970; Deixa o Trem Seguir, 71; e Quem Sou Eu?, 72). E prossegue pelos anos 80, numa das safras mais bem-sucedidas do cantor (Daquilo que Eu Sei, 1981; Depois dos Temporais, 83; Juntos e Mãos, ambos de 84 e Amar Assim, 88). A gravadora, aliada ao pesquisador Marcelo Fróes (responsável pela idealização e produção executiva), teve o cuidado em ser fiel aos trabalhos originais - incluindo, por exemplo, textos e fichas técnicas originais, bem como as letras. Os três primeiros CDs ainda trazem, no encarte, pequenas entrevistas com Ivan feitas por Fróes, nas quais o autor de Dinorah fala sobre suas influências e dificuldades no início de carreira.

Tratam-se de discos importantes na carreira de Ivan Lins. Agora trazia o cantor e compositor ainda com a pecha de "revelação", depois que Elis Regina popularizou Madalena em 1970. O álbum mostrava o entrosamento de Ivan com seu primeiro parceiro de peso, Ronaldo Monteiro de Souza (juntos, assinam dez das 12 faixas). O Amor É o Meu País (pela qual Ivan foi taxado de "adesista", na época mais negra do regime militar) e a regravação de Madalena são os destaques do disco. "Fui convencido a entrar em estúdio pelo André Midani e pelo (Roberto) Menescal. Nem me imaginava como cantor, só queria ser compositor e pianista. Eu fiz faculdade de quimica, fui preparado pela fam¡lia para ser engenheiro. Não fui para a noite cantar, não batalhei nesse sentido. Segui um caminho inverso do normal. Para se ter uma idéia, na primeira vez em que eu ia pisar num estúdio, tomei um porre para criar coragem e tive que voltar no dia seguinte...", revela Ivan ao Cliquemusic, 32 anos depois de gravar aquele primeiro registro. Na época, o cantor era, junto a Gonzaguinha, a principal figura do M.A.U. (Movimento Artístico Universitário), composto por jovens talentos revelados em festivais de MPB nas universidades.

"Minhas grandes influências vinham de dois lados. Tentava fazer igual a alguns cantores por quem era apaixonado, como Joe Cocker, Ray Charles, Elton John... e os Beatles também. Eu, que vinha da bossa nova, comecei a ser influenciado por essa música pop americana e inglesa, mais pian¡stica, e também pelo (Burt) Bacharach. A¡ fazia uma simbiose entre a bossa e o pop", lembra Ivan sobre seus primeiros passos-solo. Assim como Agora, Deixa o Trem Seguir, segundo disco de Ivan, saiu em 1971 pelo hoje lendário selo Forma (da Phillips, depois Polygram e atual Universal). Novamente afinado com Ronaldo Monteiro de Souza, Ivan gerou neste disco um clássico de sua carreira (Me Deixa em Paz) e demonstrava estar influenciado pelas (r)evoluções da MPB na época. Como, por exemplo, o samba-rock, notado em Você, Mulher, Você (gravada com o Trio Mocotó).

Ivan faz uma auto-crítica bastante lúcida desses dois primeiros discos. "Ambos os LPs foram gravados às pressas, empurrados pela gravadora. Acabaram saindo mais rústicos do que poderiam ser, mostrando a minha ingenuidade naquela época", fala. Sua interpretação vocal merece ainda mais reparos, em sua opinião. "Eu nem consigo me ouvir cantando nesses discos!", exclama. "Era tudo forçado, com uma voz que não me pertencia. Eu fumava e era comum perder a voz nos shows. Naquela época curtia-se muito aquele jeito de gritar, a garganta forçada." Ivan é franco - e irônico - sobre os fatores que o prendiam àquele estilo vocal: "A indústria fonográfica é como uma fábrica de goiabada. Se eu tivesse estourado, teria sido obrigado a cantar rouco pra sempre. Mas os discos seguintes ca¡ram ladeira abaixo... o que foi minha salvação!"

O compositor já tem outros olhos em relação a Quem Sou Eu?, o álbum que veio a seguir. "Foi a época em que comecei a ter uma visão mais sofisticada, menos ingênua do ato de compor. Minhas primeiras canções com influência do Tom Jobim - que viria a ser um dos grandes guias musicas em minha carreira - aparecem neste disco." Músicas como Pra Você Ver refletem essa mudança, ao passo que outras (Caminhos e Ratos, Baratas e Cupins) mostram influências da geração do dito rock rural. Produzido, como nos outros dois discos, por Paulo Tapajós, Ivan desta vez não faria tanto sucesso. "Acho que o disco era sofisticado demais para a época, em relação ao que fazia sucesso", lembra ele. A conseqüência foi seu desligamento da gravadora Phillips ("Fui eu mesmo quem sugeriu a saída", fala Ivan) e uma posterior reavaliação de rumos.

Ele conta: "Justamente naquela época eu falei para mim mesmo: 'Desculpe, mas não é bem assim...' e resolvi assumir minha voz normal. Tanto que eu só vim a cantar bem mesmo a partir do quarto disco." Não por acaso intitulado Modo Livre, de 1974, seu primeiro fora da Phillips. Ainda que dando a si mesmo este desconto, Ivan não se perdoa e afirma: "Gostar de me ouvir cantando, só mesmo depois do Doce Presença ouvir 30s (1995), meu segundo disco pela Velas. Foi o CD que gravei depois de ter minhas primeiras aulas de canto. A professora me chamava de maluco... por ter passado tanto tempo cantando tão lá em cima, num tom tão mais alto que o meu natural."

A coleção da Universal dá um salto no tempo para 1981, ano em que Ivan volta à gravadora (na época, já renomeada Polygram). Daquilo que Eu Sei tinha como carro-chefe a faixa-título, e marcava a boa fase da parceria com Vitor Martins - com quem escreveu praticamente todo o LP. Da mesma fase são Depois dos Temporais e Juntos, que traziam de volta não apenas a colaboração estreita com Martins, mas também a produção de Gilson Peranzetta. No primeiro LP, Ivan começava a usar sintetizadores eletrônicos junto ao tradicional piano, adornando sucessos como a faixa-título e Lembra. Juntos é creditado na capa, de forma (quase) igualitária, a Ivan, Martins & Peranzetta. O álbum é notável por trazer, em cada uma de suas faixas, convidados especiais como Nana Caymmi (Bilhete), Simone (Bandeira do Divino), Paulinho da Viola (Saindo de Mim) e Elba Ramalho (Novo Tempo). "Tenho vontade de fazer novamente um disco nestes moldes, mesmo sem o impulso de comemorar coisa alguma - o Juntos foi em uma ocasião especial, uma outra época. Agora, queria pegar uns amigos internacionais - Sting, George Benson, Paul McCartney, Michel Legrand - para fazer um disco", afirma Ivan. Os dois últimos discos da série mostram o Ivan do fim dos anos 80, entronizado como "fornecedor" de sucessos para as telenovelas da rede Globo. Mãos, de 1987, tinha como hits Vieste, Nicarágua e Iluminada. Amar Assim, lançado em 1988, trazia Ainda Te Procuro e a faixa-título.

O pacote de oito títulos vem suprir a sanha dos colecionadores completistas, que perseguiam especialmente os três primeiros álbuns de Ivan. "Os primeiros LPs estavam realmente difíceis de se encontrar. A Universal sempre trabalhou muito com coletâneas, e isso retardava o relançamento dos originais. Então foi ótimo colocarem esses discos no mercado", fala o cantor. A trinca de álbuns iniciais também ganhou faixas-bônus para este relançamento, tudo supervisionado por Ivan. Ele conta: "Acompanhei o trabalho com Marcelo Fróes na escolha do repertório e informações sobre a concepção dos discos. Ele (Fróes) pede desculpas publicamente na questão das letras, que têm muitos erros. Alguns discos já não tinham os encartes. Ele foi ao meu site (www.ivanlins.com.br) consultar, mas trata-se de um trabalho muito recente, feito por universitários. Tem muita coisa tirada de ouvido, tem erros também. Mas ainda não tive tempo de fazer correções."