Ivo Meirelles retoma seu <i>Samba Soul</i>
Cantor despede-se do Funk*n*Lata com primeiro CD solo em dez anos, impulsionado pela nova onda samba-rock
Marco Antonio Barbosa
24/10/2001
Ivo Meirelles e seu novo visual |
"Comecei minha vida na música como DJ de bailes na Mangueira, ainda moleque, tocando samba-rock - que eu prefiro chamar de suingue. Sempre estive próximo dessa sonoridade, não estou entrando em moda nenhuma agora. É uma feliz coincidência que o momento esteja tão bom para a música negra brasileira, justo na hora em que lanço meu disco", diz Ivo. Para provar o que afirma, ele preferiu rechear Samba Soul quase que exclusivamente de composições antigas - como Só os Fracos Sobrevivem, Menina Beija-Flor, Céu Azul dos Miseráveis e Samba Soul. "Menina Beija-Flor é de 1991, e já era naquela época um tremendo suingue. É meu estilo de dez anos atrás, um samba-pop, misturando Mangueira e James Brown. Estou retomando meu trabalho exatamente do ponto no qual parei, como se nada tivesse acontecido. Todas estas canções são músicas que não cabiam no repertório do Funk'n'Lata."
Portanto, a onda de Ivo Meirelles continua batendo na mesma praia, o que pode ser comprovado também pelas únicas duas músicas novas do disco - Samba Ponte Aérea e Tá Faltando Preto na Televisão. A fidelidade a seu estilo custou alguma incompreensão ao artista. "O pessoal da Mangueira - onde moro até hoje - não entende como é que eu não faço pagode. Já tive uma proposta da (gravadora) Sony para me tornar O Sambista do elenco deles, em troca de uma boa grana. Não quis, porque o meu samba não é como o que se ouve por aí", conta Ivo. A opção pela seara da black music - historicamente segregada pela mídia, vide exemplos de "malditos" como Simonal, Itamar Assumpção e Bebeto - não assusta o mangueirense. "Eu sempre fui subterrâneo mesmo, nunca tive grande espaço. Também sou como todos esses excluídos", diz Ivo.
Dez anos depois de lançar seu último LP solo (Desafio da Navalha), Ivo havia resolvido que 2001 seria o ano de sua volta, de qualquer jeito. "Estava decidido a fechar meu ciclo com o Funk'n'Lata e entrar em estúdio por conta própria. Sempre banquei meus próprios discos - primeiro eu junto uma grana, gravo e depois corro atrás de uma gravadora interessada em lançar. É por isso que eu de vez em quando sumo do mercado: quando me falta grana, não consigo gravar", fala o cantor. Um encontro com Bernardo Vilhena, velho amigo e parceiro (co-assina Samba Ponte Aérea no disco novo) e diretor do selo Regata, juntou o útil ao agradável. "O Bernardo veio me ver no estúdio gravando e disse que queria assumir o disco - sem nenhuma intromissão artística, claro", lembra Ivo. "Eu já estava cheio de reservas quanto às gravadoras multinacionais. A Regata é um selo muito antenado com o que há de bom por aí, era mesmo o lugar ideal para mim."
Na Regata, Ivo divide espaço com gente como Paula Lima, Seu Jorge e o grupo Clube do Balanço, que desbravaram o território do samba-rock e o trouxeram à ribalta de novo (junto ao outro quartel-general, a Trama). "Sinto-me gratificado ao ver o espaço que essa galera nova conquistou", diz Ivo. "A black music brasileira sempre foi uma coisa meio marginal. E eles acabaram me ajudando também; não fosse pelo sucesso deles, meu disco poderia soar meio estranho para os padrões do mercado. Eles abriram o caminho."
Para marcar o lançamento de Samba Soul, Ivo promoveu no último dia 20 uma audição pública do álbum, em pleno Morro da Mangueira. Junto ao som, ofereceu também uma feijoada aos populares e a convidados especiais (Sandra de Sá, Jorge Benjor, Fernanda Abreu e outros). O expediente, segundo o cantor, serviu para trazer sua música para perto de sua gente. "Não vejo os mangueirenses nos meus shows, o que é um erro", diz Ivo. "Não posso ser um artista que canta para as classes A-B, mas acabo me tornando justamente isso por causa da dominação do pagode na mídia. A galera do morro fica achando que eu sou complicado. Mas meu discurso é todo voltado para a realidade deles, que é a minha também. Por isso esta audição: quem não tiver grana para comprar o CD vai poder conhecer as músicas." O cantor pretende fazer novas audições em outras comunidades carentes do Rio.
A década que separou os dois últimos discos de Ivo Meirelles não foi nem de longe improdutiva. "A parada na minha carreira solo começou em 1992, quando fui eleito vice-presidente da (escola de samba) Mangueira. Com o perdão da palavra, isso f... com a minha vida (risos). Passei a não ter mais tempo para nada. Agora não mando mais em nada lá dentro, não quero nem entrar em concurso de samba-enredo", conta Ivo, que emplacou como compositor um samba clássico da escola (Caymmi Mostra ao Mundo o que a Bahia e a Mangueira Têm, de 1988). Em 1995 ele formou o Funk'n'Lata, tendo lançado dois álbuns e excursionado pela Europa e EUA com o grupo. "Eles agora estão prontos para seguir sozinhos", afirma Ivo sobre o conjunto, formado por jovens percussionistas recrutados no Morro da Mangueira. "O novo vocalista é um garoto chamado Mário Brother, e ele é fantástico", conta o compositor. Apesar de se afastar do dia-a-dia do grupo, Ivo continua como mentor do F'n'L. "Outra pessoa não saberia traduzir a musicalidade deles", acredita.