Jamelão e Walter Alfaiate: vendendo saúde e talento

Os veteranos do samba carioca reafirmam sua fé no partido alto tradicional e lançam discos na época do Carnaval

Carla Leite
25/02/2003
E que não venham com essa história de que o "samba agoniza mas não morre". Nada mais distante disso é a saúde que dois veteraníssimos do partido alto carioca acabam de demonstrar. Jamelão e Walter Alfaiate retomaram suas carreiras individuais em 2003, lançando quase ao mesmo tempo álbuns que reafirmam a vitalidade da tradição do nosso samba. O puxador-símbolo da Mangueira, que completará em maio 90 anos, faz do título de seu CD - Cada Vez Melhor - uma afirmação de que ainda tem muito a oferecer ao público. Já Walter Alfaiate lança Samba na Medida, o aguardado sucessor de Olha Aí (primeiro disco solo do sambista, lançado tardiamente em 1998). Às vésperas de mais um Carnaval regado à batucadas cada vez mais sem imaginação, trata-se de duas verdadeiras aulas de samba autêntico e refinado.

A eterna garganta mangueirense
A vitalidade e a longevidade de Jamelão são únicas. Prestes a chegar às nove décadas de vida, enfronhado no samba desde a infância (ganhou o primeiro cavaquinho aos dez anos), ele é figura indissociável dos sambas-enredo da Estação Primeira de Mangueira, sua escola de fé. De quando em quando, porém, a figura do puxador dá lugar à do tarimbado intérprete de sambas sentimentais (ou, explicitamente, de fossa), lançando álbuns individuais. Cada Vez Melhor é seu primeiro disco de carreira desde 2001. "Não sou puxador, sou intérprete. Puxador é quem puxa carro, é ladrão de automóvel. Meu negócio é cantar samba", naõ se cansa de repetir Jamelão a quem quiser categorizar sua música de maneira fácil.

Cada Vez Melhor, lançado pelo pequeno selo Obi Music - que se dedica a resgatar variadas tendências da música negra brasileira - procura fazer uma amostragem do que Jamelão fez ao longo de toda a sua carreira. "É o que eu sempre fiz, o que sempre cantei. O samba-canção, as músicas da minha época de crooner", diz o veterano, que nas 15 faixas do novo disco foi produzido por Lua Lafayette - com direito a mixagem do pop-sambista Leandro Lehart. "Não quer dizer que eu tenha mudado alguma coisa no meu modo de trabalhar. O que muda é a tecnologia; o jeito de cantar e de tocar não", fala o mangueirense. Sempre alheio aos modismos, por sinal: rejeita terminantemente, por exemplo, o pagode romântico. "É uma coisa inventada, maçante, chata. Coisa de gente que conhece pouco de música", afirma.

Além de clássicos do samba-canção (Matriz ou Filial, de Lúcio Ardim, Segredos, de Bela Maria e Reginaldo Regis, por exemplo), o repertório vai fundo em Lupicínio Rodrigues. O grande estilista da fossa sempre teve em Jamelão seu mais famoso intérprete. "As músicas do Lupicínio são meu carro-chefe. E elas nunca vão morrer. Sempre estarão no coração do povo", acredita o sambista. Vou Brigar com Ela, Sozinha, Nunca e Ela Disse-me Assim , todas já gravadas anteriormente por Jamelão, foram as escolhidas. Duas canções da própria lavra do sambista (Boa Noite e Esta Melodia, ganham novas versões, reunidas a obras de Ary Barroso (Folha Morta) e Caymmi (Falsa Baiana). "É mais um disco de intérprete, como sempre fiz questão de ser conhecido. Refazer todas essas músicas é meu dever de intérprete", ressalta Jamelão.

Com o auxílio luxuoso de uma seção de cordas clássicas, o vozeirão do cantor ("Para estar com esta idade e ainda com a voz deste jeito, a única explicação é um dom de Deus", diz Jamelão) encontra-se em boa companhia. O refinamento e a fossa dão lugar ao Carnaval no oportuno medley de sambas-enredo que encerra o disco. Incluindo, claro, o campeão de 2002, Brasil com Z É Pra Cabra da Peste, Brasil com S É a Nação do Nordeste. Outra referência à amada verde-e-rosa é a recriação de Piano na Mangueira (Jobim/Buarque), que ganha ares de samba-jazz. "Meu negócio é cantar. Gosto de desfilar, do Carnaval na avenida, mas à essa altura se a Mangueira ganha ou perde o campeonato me é quase indiferente. O bom para mim é pisar na Sapucaí e levar o meu samba", fala Jamelão sobre a disputa entre as escolas de samba.

Alfaiate, o veterano com apenas dois discos
Ligado a outra das mais tradicionais escolas de samba cariocas (a Portela), Walter Nunes de Abreu, o Walter Alfaiate, não teve uma carreira tão regular quanto a de Jamelão - apesar de ter quase 60 anos de carreira como compositor, apenas agora chega a seu segundo álbum solo, Samba na Medida (CPC-UMES). Aos 72 anos, Walter, que dividiu a trajetória artística com a profissão que lhe conferiu o apelido, resgata pérolas inéditas, ou quase, de compositores pouco conhecidos com quem conviveu nas rodas de samba do bairro carioca de Botafogo. "É um bairro de sambista, mas não é falado como Estácio ou Madureira", diz Walter sobre sua vizinhança.

Mais cantor do que compositor, Alfaiate destrinchou o baú alheio de canções perdidas para construir seu Samba na Medida. O exemplo mais claro é Bateram em Minha Porta, música de autor desconhecido que abre o disco. "Todo mundo que participa de roda de samba em Botafogo já ouviu essa música. Eu cresci ouvindo, mas hoje ninguém sabe quem a escreveu", diz Alfaiate. Um tanto menos anônimos, mas ainda longe dos refletores da mídia são nomes como Felipão do Quilombo (Prato do Dia), as dupla Paquito & J.Santos (Chapeú da Comadre), Pica-Fumo e Bagulho (Quem Não Conhece Esse Ritmo Quente) e Mical e Miúdo (Resignação), Diógenes (Lugar Onde Eu Nasci) e Altamiro Freitas (Meu Botafogo Querido, que poderia ser bem a música-tema do disco). O tom é para cima, vivaz, descontraído. "Como uma boa roda de partido alto, sem muita cerimônia. É só o samba de raiz sincopado de sempre", fala o cantor.

O repertório ainda percorre pérolas escritas pelo próprio Alfaiate, como É Madrugada e Já Te Esqueci, ambas feitas nos anos 60 e assinadas ainda por Walter Nunes - o próprio Alfaiate, antes de assumir o apelido como nome artístico. Entre as regravações, duas contribuições vindas da Portela (o samba-enredo Contos de Areia, de Dedé e Norival Reis, e Isso um Dia Tem que se Acabar, de Noca da Portela e Mauro Duarte), uma de Aldir Blanc (Mastruço e Catuaba, parceria com Cláudio Cartier) e A Paixão e a Jura, outra de Mauro Duarte.

Sem precisar buscar modernidades, Alfaiate escorou-se na instrumentação básica do samba e do choro (com arranjos de Ruy Quaresma) na hora de fazer a cama para sua voz. A qual, aliás, continua potente, na tradição de veteranos como Monarco e Jamelão. "O gogó que Deus me deu é bom", brinca o sambista. Na faixa-título, Nei Lopes comenta um pouco sobre a trajetória pouco usual de Walter, compositor reverenciado por astros como Paulinho da Viola e Beth Carvalho que, no entanto, esperou décadas para brilhar em carreira solo. "Tinha de haver maior divisão de espaço para todos. A música comercial domina tudo, mas poderia haver mais chance para artistas como eu", fala Alfaiate sobre sua irregular carreira. "Mas não reclamo. Acho que para alguém na minha idade, o reconhecimento que estou tendo é uma dádiva."