Jane Moraes: de volta à bossa nova

Ex-cantora do conjunto vocal Os Três Morais e da dupla Jane & Herondy comanda o Clube da Bossa, que resgata clássicos da MPB

Carlos Calado
13/04/2001
Se você ainda só a conhece como a loira da extinta dupla romântica Jane & Herondy, que durante os anos 70 freqüentou as rádios populares e programas de auditório na TV, como os de Chacrinha e Bolinha, está na hora de apertar a tecla reset. Há quatro anos, a cantora Jane Moraes comanda o Clube da Bossa, quinteto formado por talentosos instrumentistas de São Paulo. Até o fim deste mês, ela e o grupo estão em cartaz todas sextas-feiras, no Teatro Crowne Plaza, em São Paulo. Relembram pérolas de autores da melhor MPB, como Tom Jobim, Chico Buarque e Vinícius de Moraes, no show Isto É Bossa Nova, Isto É Muito Natural.

Essa aparente guinada musical de Jane Moraes é, na verdade, um retorno. Em 1964, ao lado dos irmãos Roberto e Sidney (que havia participado dos Garotos Vocalistas e do Conjunto Farroupilha), ela integrava Os Três Morais, grupo vocal que deixou sua marca no cenário musical da época. Ainda mais após o sucesso de Sambachiana, composição de Ely Arcoverde feita especialmente para a voz de Jane, inspirada no estilo dos arranjos vocais do badalado grupo norte-americano Swingle Singers.

Foto: Divulgação
A cantora Jane Moraes
Cantar bossa nova e jazz era algo natural para a garota que cresceu ouvindo os arranjos que o irmão Sidney (quase 20 anos mais velho que Jane) escrevia para diversos conjuntos vocais. "Aos 6 anos de idade, eu já sabia tudo do Glenn Miller, por causa dele. Como nós morávamos ao lado da TV Tupi, quem trabalhava lá comia muito em casa. O Pery Ribeiro, o Tito Madi e o Ivon Cury eram amigos dos meus irmãos. João Gilberto, que eu adorava, ia até à missa das 6 e meia com o Sidney, na igreja de Nossa Senhora de Fátima. Meu irmão dizia que o João ia junto só para pedir o violão emprestado", diverte-se.

Segundo a cantora, os Três Morais nasceram graças ao maestro e pianista paulista Laércio de Freitas, que hoje escreve arranjos para diversas orquestras, como a Jazz Sinfônica e a Banda Mantiqueira. "Ele estava sempre em casa. Chegamos a montar juntos um quarteto vocal, chamado Os Quatro, para cantar no programa de rádio do Fausto Canova. Foi o Laércio quem disse que ficaria mais bonito um trio só com os irmãos. Ele sugeriu até o nome", credita Jane, esclarecendo também o porquê da grafia diferente do sobrenome materno Moraes, no nome do trio. "O Sidney também era desenhista e quando começou a cantar passou a usar Morais. Ele usava o ‘i’ para desenhar o braço de um violão na assinatura".

Rixas da bossa nova
Além da influência jazzística dos Swingle Singers, no repertório dos Três Morais chamavam especial atenção as seleções de bossa nova, arranjadas por Sidney. "Neste show do Clube da Bossa, eu até canto uma dessas seleções. Foi uma das primeiras coisas que os Três Morais cantaram na TV", avisa Jane. Graças à qualidade de suas performances, o trio conquistou até o privilégio de se apresentar em programas concorrentes, como O Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina na TV Record, e o Bo-64, que o produtor Walter Silva, o Pica-Pau, comandava na TV Tupi. "Quem se apresentava num desses dois programas, geralmente não entrava no outro. Era uma rixa terrível, porque as coisas mais arrojadas aconteciam na Tupi e o Fino da Bossa já era mais comercial", recorda.

"O mais interessante é que, naquela época, as emissoras de TV pagavam para que a gente se apresentasse nos programas. Por isso havia tanta coisa de qualidade na televisão", observa a cantora, lembrando com ênfase de sua participação num programa que o compositor e cantor Edu Lobo apresentava na TV Tupi. "Foi uma das coisas mais lindas que fiz naquela época. Era um trecho do musical Arena Conta Zumbi, uma conversa de uma flauta com um clarinete. O Edu pediu que eu fizesse o papel da flauta, cantando ao vivo. Foi uma coisa extraordinária", recorda.

No final dos anos 60, a situação já tinha mudado radicalmente. "Quase não havia mais lugar para cantar. Fazíamos muitos shows em teatros de universidades e isso estava proibido. Tentamos trabalhar em boates, mas quase todas tinham virado inferninhos. Quem não pôde ir embora do país, ficou trabalhando em publicidade", conta a cantora, lembrando de seus últimos shows com os Três Morais. "Numa noite, lá estava a gente, cantando bacaninha, quando um cara passou na nossa frente, carregando umas lingüiças. Não dava mais, estava virando mundo cão".

Já vivendo com o cantor Herondy Bueno (seu segundo marido, com quem está casada há 31 anos), em 1970, Jane gravava jingles e trabalhos de publicidade, quando os dois decidiram levar adiante o projeto de uma dupla com repertório de música romântica. "De vez em quando eu ganhava uns cachezinhos, cantando no Clube dos Artistas, na TV Tupi. O Airton Rodrigues, que apresentava o programa, conheceu o Herondy e, numa noite, pediu que eu cantasse uma música norte-americana com ele", conta, lembrando como surgiu a idéia de formar a dupla, que deixou como maior sucesso a lacrimosa canção Não se Vá.

Sandy e Júnior dos anos 70
O sucesso de Jane & Herondy foi imediato. "Não existia uma dupla como aquela, com uma loirinha e um moreno, que parecia preto. Como eu sou muito branca, antigamente a minha imagem borrava na televisão. Eles precisavam dar mais cor para mim e por isso acabavam escurecendo mais o Herondy, que ficava com imagem de preto. Na verdade, ele é moreno, porque a mãe dele era mulata. Foi maravilhoso: nós dois casadinhos e bonitinhos, fazendo aquela linha Sandy & Júnior por tanto tempo", ironiza Jane. "Gravamos uns 14 LPs e muitos compactos duplos e simples. Assim que alguma música estourava em algum lugar, a gravadora já soltava um compacto. Era um negócio feito para vender disco", admite a cantora.

Um grave acidente, na rodovia Anhanguera, em 1985, diminuiu bastante o ritmo da carreira da dupla. "Estávamos indo para um show em Uberlândia. Havia uma carreta virada na estrada, fechando a pista até o acostamento. A nossa sorte foi termos entrado no teto do baú frigorífico, onde havia muita carne. Ficamos em casa por uns seis meses", recorda a cantora, que teve uma costela fraturada e o rosto cortado. Mais prejudicado ainda, Herondy sofreu traumatismo craniano e fratura da bacia. "Felizmente não ficaram seqüelas, mas quando voltamos, a gravadora já tinha mudado de direção. Acabamos pedindo demissão e eles concordaram".

Avaliando a experiência, Jane diz que hoje não desmerece o trabalho da dupla, "Quando você tem filhos, o idealismo passa para segundo plano. Não havia condição de, sem chances de trabalho, ficar lutando para cantar o tipo de música que eu gostava. Pelo menos esse trabalho ofereceu condições de darmos boas escolas para as nossas duas filhas", considera. "O Eduardo Araújo me disse, na época do acidente, que a pessoa só tem as coisas de acordo com o valor que dá a elas. Tanto o Herondy quanto eu, nunca demos muito valor à dupla, porque sempre achamos que ela iria acabar logo. Começamos achando que seria um projeto de um ano, algo bem descartável, mas a dupla foi durando, durando, e nós não sabíamos como administrá-la".

Com a desativação progressiva da dupla, Jane voltou a se apresentar na noite paulistana. Em 1991, estrelou um show dirigido por Fernando Faro, com participação do pianista Adilson Godoy, no extinto Ópera Cabaré. Mas foi só em 1997, na Baiúca, que a cantora inaugurou o atual projeto Clube da Bossa. Depois de passar por outras casas, em março último, ela e seu quinteto fizeram uma concorrida temporada no Supremo Musical, onde foi gravado o CD-demo Clube da Bossa, que já está sendo veiculado em algumas rádios de São Paulo, apesar de ainda nem ter sido lançado no mercado.

"A idéia do Clube da Bossa é resgatar a sensibilidade, permitir que as pessoas possam ouvir de novo música bem elaborada. Quando canto Violão Vadio, do Baden Powell, gosto de contar como ela foi feita. A platéia fica deslumbrada ao entender o espírito da música", comenta a cantora, elogiando a experiência dos músicos que a acompanham. Além do conhecido violonista Natan Marques (que tocou com Elis Regina durante anos), o Clube da Bossa destaca Clóvis Corrêa (piano e vocais), Vidal Sbrighi (sax e flauta), Ipojucam Zwarg (contrabaixo) e Duda Peres (bateria). O repertório do show mistura clássicos da bossa nova e da MPB, como Chovendo na Roseira (Tom Jobim), Batida Diferente (Durval Ferreira e Maurício Einhorn) e Com Açúcar Com Afeto (Chico Buarque), além de alguns standards do jazz.

"Acho que tudo está previsto na vida das pessoas. Agora, com o Clube da Bossa, parece que Deus me orientou a fazer uma coisa que antes nem passava pela minha cabeça. É como se ele dissesse que nós vamos ser enterrados com dignidade", brinca a cantora.