Jards Macalé levanta uma <i>outra</i> bandeira

Com seu novo álbum Amor, Ordem & Progresso, compositor quer mudar o lema da bandeira nacional

Marco Antonio Barbosa
19/08/2003
Ainda sobre a geração de ouro da MPB que, ao raiar do novo milênio, atinge os 60 anos de vida (Chico, Caetano, Gil, Milton, Paulinho, Ben), a memória popular pode pôr de lado, ocasionalmente, Jards Macalé. Autor de alguns dos mais peculiares clássicos da nossa música desde a Tropicália, Jards dá folga para sua porção compositor e dedica-se ao seu lado intérprete em Amor, Ordem & Progresso ouvir 30s- recém-lançado pela Lua Discos e seu primeiro álbum em dois anos. Mesmo questionando sua posição relativamente obscura na história recente da MPB ("Sou o último que falta a ser anistiado", afirmou em entrevista recente), Macalé enverga a bandeira do amor. E, em suas próprias palavras, "quero começar uma campanha cívica pela inclusão do amor na bandeira brasileira."

O título do novo disco refere-se, claro, ao lema bordado na bandeira nacional ("Ordem e Progresso"), retirado do idéario do pensador positivista Augusto Comte. Além da citação explícita no título, o lema de Comte ressurge no álbum na regravação de Positivismo, de Noel Rosa. "Não sou partidário do Comte, nem nada, mas sei que um dos lemas dele era 'o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim'. E que fim levou o amor? Por que o amor não está em nossa bandeira?", pergunta Macalé, quase indignado. O samba de Noel e Orestes Barbosa, composto em 1933, também perguntava pelo amor. "Essa temática já intrigava a cabeça do Noel, há sete décadas. Acabou por me intrigar também", fala Macalé. O cantor elabora sobre sua campanha pela revisão do ideal positivista: "Gostaria de ver, a sério, uma discussão sobre a inclusão da palavra amor no lema da bandeira. Um debate no Congresso Nacional. Poderia ser a revolução que faltava para o país, ver o Brasil sob a égide do amor."

Positivismo, a canção, forneceu a Macalé os eixos fundamentais para o repertório do disco: o samba e o amor. "As músicas escolhidas todas falam de amor, de uma maneira ou de outra. E são todas sambas, sejam vindas da bossa nova, ou do período de antes da bossa. Porque a bossa nova também é samba", explica Jards.

O disco novo retoma a parceria que gerou também Macalé Canta Moreira, seu álbum de 2001, produzido em colaboração íntima com Moacyr Luz. "Escolhemos o repertório juntos e também decidimos para onde os arranjos iriam caminhar. Teria que ser algo bem econômico, tanto do ponto de vista financeiro, quanto do ponto de vista sonoro", diz Macalé, que canta acompanhado de um time pequeno, mas bem afiado, de instrumentistas - no qual brilham Victor Biglione (guitarra), Arismar do Espírito Santo (baixo) e Robertinho Silva (guitarra), além do violão do próprio Luz. "As bases foram gravadas por mim, na voz e violão, depois fomos juntando tudo em sessões rápidas de gravação entre Rio e São Paulo", narra Macalé.

A escolha de Positivismo como canção-guia do novo trabalho, além de inspiração para o título, também foi decidida em conjunto com Moacyr. Isso mudou os rumos originais do álbum; quando a dupla se juntou para pensar no que viria a se tornar Amor, Ordem & Progresso, a idéia era fazer um disco-tributo a Newton Mendonça. "Era para se chamar New-Tom, um trocadilho com o nome dele e com a dobradinha que ele fez com o Tom (Jobim)", diz Macalé. O projeto foi abortado quando o cantor descobriu que um outro tributo (da cantora Cris Delanno) acabara de chegar ao mercado. "Ainda assim colocamos no disco a maravilhosa Foi a Noite, uma das grandes parcerias do Newton com o Tom, que não ficou tão famosa quanto Desafinado, por exemplo", retoma Macalé.

E seguiu pinçando músicas próprias, como Meu Amor me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata ou Amo Tanto, mas sempre privilegiando o lado intérprete. Do afro-samba (Consolação, de Baden Powell e Vinicius de Moraes), à tentativa de unir as pontas da pré (Manhã de Carnaval, de Luis Bonfá e Antônio Maria) e da pós (Samba da Pergunta, de Pingarilho) bossa, tem de tudo um pouco. Sem esquecer as pérolas mais remotas como Por Causa Dessa Cabocla (Ary Barroso/Luiz Peixoto) ou mais contemporâneas, como Roendo as Unhas (Paulinho da Viola). "É tudo samba, num registro ou noutro. Fomos eu e Moacyr pensando no roteiro e uma música praticamente sugeria a seguinte", fala o cantor.

Apesar de ter incluído um pequeno punhado de músicas próprias, Macalé não relembrou seu parceiro mais famoso, Waly Salomão - morto pelo câncer há poucos meses. "Ele morreu repentinamente, e quando tudo aconteceu o disco estava sendo finalizado. Não deu tempo de incluir alguma parceria nossa", rememora Jards, que no entanto pôde fazer uma singela dedicatória a Waly no encarte. Colaboradores durante o auge do Tropicalismo - escreveram junto clássicos como Mal Secreto e Vapor Barato - Waly e Jards serão resgatados pelo próprio Macalé num projeto futuro. "Farei um disco só de releituras de nossas parcerias, com todas as músicas mais importantes", diz o cantor.