JK por Wagner Tiso e Zé Renato: além do <i>Peixe Vivo</i>

O álbum Memorial faz homenagem ao presidente que fundou Brasília, no ano de seu centenário de nascimento

Marco Antonio Barbosa
26/07/2002
Juscelino Kubitschek entrou para a História do Brasil por uma variedade de motivos. Presidente da República entre 1956 e 1961, sempre será associado à modernização do país; a construção de Brasília, a aceleração dos setores produtivos, o impulso à indústria automotiva, tudo isso se deu durante os "50 anos em 5" que JK prometia para sua gestão. Um dado que também permaneceu no inconsciente coletivo foi a relação de Juscelino com a música popular - ele, o presidente amado que, ao morrer, em 1976, foi sepultado ao som de uma multidão entoando a folclórica Peixe Vivo. Todos esse imaginário sonoro e político, e muito mais, entrou na criação do álbum Memorial ouvir 30s (Biscoito Fino), assinado por Wagner Tiso (mineiro como JK) e Zé Renato, que chega às lojas no ano em que se relembra o centenário de nascimento de Kubitschek.

"As memórias da época do JK, na minha cabeça, envolvem várias mudanças muito grandes no Brasil. O Cinema Novo, a bossa nova, o país se motorizando. Foi um período rico. E acima de tudo ele (Juscelino) passava uma idéia de ser um homem ligado na música, na cultura popular. Ele sabia o que estava se passando nas artes", considera Wagner Tiso, que tinha 11 anos quando o então governador de Minas Gerais foi eleito presidente. Zé Renato, mais jovem (nasceu naquele mesmo ano de 1956), ressalta a personalidade magnética de JK. "Lembro que estive em uma festa na qual ele estava, quando eu era muito pequeno - e a lembrança nunca me abandonou. Apesar de não ter tido idade para viver plenamente seus anos no poder, li muito a seu respeito. Ele era um democrata no melhor sentido da palavra, uma pessoa que sabia conviver com os outros e unir-se a eles apesar das diferenças. Um político sonhador, alegre, que passou esse espírito para o país também."

Memorial, então, é um modo terno de celebrar o espírito "artístico" de JK, compilando canções que, de maneiras mais ou menos óbvias, teriam a ver com a história do político, morto em 1976 em um (até hoje mal-explicado) acidente de automóvel. Na seleção do álbum, produzido e orquestrado por Wagner (e concebido por ele em parceria com Zé), entraram desde as serestas ancestrais É Ti a Flor do Céu e Amo-te Muito até a bossa nova de Tom & Vinicius (Lamento no Morro e O Grande Amor). E, claro, Peixe Vivo. Tem caipirice (Tristeza do Jeca), samba-canção (Pois É) e Clube da Esquina (Céu de Brasília, de Fernando Brant e Toninho Horta). Uma homenagem musical bem ampla.

"Quando nos chamaram para fazer este projeto, a idéia original era só ficar nas serestas que faziam sucesso no começo do século, em Minas", fala Wagner. A idéia de gravar um disco no ano do centenário de JK partiu do Instituto Takano, parte de um grupo empresarial que queria fazer uma revista comemorativa na qual Memorial viesse encartado. Wagner Tiso e Zé Renato foram os primeiros e únicos a serem cogitados para gravar o CD. "Sempre quis trabalhar com o Zé. Mas ao mesmo tempo eu hesitava em aceitar, por causa dessa obrigação temática no repertório", conta Wagner. "Acabamos saindo da idéia inicial e ampliando a escolha, abrindo para colocar sambas, a parte da bossa nova", lembra Zé Renato. "A seleção acabou guiada por nossos gostos pessoais, mas tudo tem uma conexão com JK. Na verdade, a única limitação que tivemos foram os anos de nascimento e morte do Juscelino; primeiro escolhemos as músicas, depois fomos relacionando-as à vida dele", completa Zé.

No encarte do CD, um texto biográfico em blocos põe ordem cronológica nas músicas e comenta as possíveis ligações com a trajetória de JK. Malandrinha, por exemplo, alude à esperteza típica do político mineiro. Fechei a Porta relembra a saída do Palácio do Catete, no Rio, e a ida para o Planalto Central; Céu de Brasília marca a inauguração da nova capital. "Tudo acabou tendo uma certa coerência", diz Wagner Tiso. "As músicas mais antigas pertenciam à nossa memória remota, coisa que nossas avós cantavam. O Caymmi (presente em Rosa Morena) influenciou Tom e Vinicius, que por sua vez influenciou o que eu e o Zé fazemos hoje..." Zé Renato afirma: "Quando vimos todas essas possíveis relações, entre nós dois, o repertório e o próprio JK, pensamos: por que não expandir o projeto, deixar o disco ter vida própria?"

Acabou saindo um disco refinado, distante da simplicidade brejeira do Peixe Vivo. Wagner providenciou delicados arranjos de cordas que dão vida suntuosa a números tão díspares quanto Neusa (1938, Antônio Caldas e Celso de Figueiredo) e Quando Tu Passas Por Mim (1953, Vinicius e Antonio Maria). Noutras faixas, vale a economia que fala muito com poucos elementos, como em Noite Cheia de Estrelas ou Céu de Brasília, límpidas, sutis. Ao lado de Zé e Wagner, convidados como Milton Nascimento (em Tristeza do Jeca), o Boca Livre (em Amo-te Muito) e um coro - em Pois É - que reúne figuras como Miúcha, Ana Jobim, Olivia Byington e Olívia Hime.

"Fomos trabalhando juntos, durante todo o percurso. Tivemos a preocupação de fazer um disco que se encaixasse no curso normal de nossas carreiras, em termos de sonoridade", afirma Zé Renato. "E isso não foi difícil, pois tínhamos belas melodias que abriam para caminhos harmônicos muito interessantes, para orquestrações e arranjos que poderiam soar completamente atuais", reflete Wagner. "O fato do Zé ser um cantor afinadíssimo só ajudou", complementa, afagando o parceiro. "Nunca tinha feito um disco inteiro com ele, só nos esbarrávamos em participações especiais em discos dos outros. Mas eu sempre achei a voz dele linda", elogia Wagner. "Entrar em estúdio com o Wagner, além de ser uma experiência riquíssima para qualquer um, é muito fácil", retribui Zé.