Joyce defende o frescor da sua bossa

Musa brasileira dos roqueiros alternativos ingleses e americanos, a cantora e compositora - que chega ao Brasil com seu disco japonês, Tudo Bonito - tenta manter distância da eletrônica

Silvio Essinger
09/11/2000
Marcos Valle, os Mutantes, Tom Zé, Tom Jobim, Jorge Ben e Caetano Veloso se alternam na posição de objeto brasileiro de culto entre moçada da eletrônica, do hip hop e do rock alternativo dos Estados Unidos e Inglaterra. A musa desse setor, porém, é inconteste: Joyce. Cantora, compositora e violonista, ela aparece na lista de favoritos de bandas pop avant garde como Stereolab, Superchunk e Tortoise, graças a discos que, em sua forma, pouco se afastam dos preceitos ditados por Tom e João lá pelo fim dos anos 50. Seu mais novo álbum, Tudo Bonito ouvir 30s, gravado no começo do ano para o selo japonês Rip Curl e enfim lançado no Brasil, pela Sony Music, não tem sintetizadores, samples, beats, guitarras ou DJs. É um disco carioca, com muito samba e bossa, o piano atemporal e algumas músicas de João Donato e o clarinete de Paulo Moura, patrimônio da MPB forjado nas gafieiras.

Mesmo diante do grande sucesso nos Estados Unidos da bossa eletrônica de Bebel Gilberto, Joyce não vê por que abrir mão da sua linguagem em prol de algo mais contemporâneo. "Não é de hoje essa história de eletrônica e música brasileira", conta. "Essa proposta, de fazer um disco com DJs, me foi feita em 1995 pelo produtor Brian Bacus, que hoje está na Blue Note. Mas acho que não era coerente para mim. Minha geração é outra! Mas se quiserem pegar as minhas músicas e remixar, tudo bem." De qualquer forma, a cantora vê com muita satisfação e êxito da filha de João Gilberto e Miúcha com o disco Tanto Tempo ouvir 30s."Bebel foi a pessoa certa, na hora certa, com a música certa. Foi a mesma conjunção que levou ao sucesso a Astrud Gilberto – que nem é mãe dela (risos)!"

Por sinal, a carreira internacional de Joyce continua indo muito bem. "Só este ano viajei por quatro continentes, só faltou a Austrália", diz ela, que tem passado cerca de 40 por cento do ano fora do Brasil. "Minha vida é isso, essa roda viva." Recentemente, ela esteve em Joanesburgo, na África do Sul, para participar do festival Art Alive, um dos mais importantes da África. Isso sem falar nas turnês pela Europa, Estados Unidos (as duas costas) e, é claro, o Japão, que se repetiram em 2000. Não falta a Joyce milhagem para ter uma boa idéia de como vai a receptividade à música brasileira no mundo. "Cada um tem a sua maneira de amar a MPB e todas valem à pena", diz. "O mercado no Japão está consolidado, a Europa está vivendo um novo boom – a Escandinávia agora se abriu totalmente – e os Estados Unidos nunca deixaram de se interessar – na área dos músicos, não há quem não conheça um pouco de português ou não queira fazer seu disco brasileiro."

Parceria com Donato
Tudo Bonito foi mais um projeto de Joyce com o produtor Kazuo Yoshida, japonês que vem gravando a fina flor da bossa e do samba para os ouvidos nipônicos – com ele, por sinal, a cantora vem trabalhando desde o CD Delírios de Orfeu (1994, que não saiu no Brasil). Foi Kazuo quem fez questão de trazer João Donato para o disco – ele tocou piano, cantou, além de ter colaborado com a música Prossiga (parceria com Joyce do fim dos anos 80, que só tinha sido gravada há pouco tempo em disco de Ana Martins, filha da cantora), a nova Falta de Ar (parceria com o irmão Lysias Enio) e os clássicos Bananeira e Sambou, Sambou.

"Conheço Donato desde que ele voltou para o Brasil, no começo dos anos 80, mas sou sua fã desde pequena, ele é uma inspiração para mim", conta Joyce. "Logo que chegou, ele veio cantando as músicas do meu primeiro disco, de 1968, que ninguém conhecia." Os dois voltaram a se encontrar recentemente, quando Donato tocou piano no disco de Ana, Futuros Amantes ouvir 30s, lançado somente no mercado japonês (e, é claro, produzido por Kazuo Yoshida, que havia trabalhado com o pianista no disco Coisas Tão Simples, de 1997).

Em Tudo Bonito, Joyce fez questão que Donato mostrasse sua classe no piano elétrico Fender Rhodes, cuja sonoridade marcou o jazz-funk dos anos 70. "Ele é um dos músicos que melhor usaram o Fender no mundo – ele inventou esse negócio, criou uma linguagem", elogia. Por outro lado, Paulo Moura foi a presença indispensável em Lamarca na Gafieira. Já o jovem André Mehmari, de 22 anos de idade (vencedor do Prêmio Visa de Música Instrumental em 1998) foi o escolhido para fazer os arranjos de cordas do disco. As gravações foram realizadas em abril, no Rio de Janeiro, e não tomaram mais do que uma semana – Joyce não é daquelas de passar muito tempo no estúdio. Prefere o primeiro take ao exaustivo processo de gravar vários canais e depois tirar o melhor pedaço de cada interpretação "para fazer um Frankenstein". "Quando gravo, estou registrando um momento. Gosto dos sons humanos, do pé no pedal, do dedo do baixista."

Apesar de algumas regravações (como é o caso ainda de Só Tinha de Ser Com Você), o disco é calcado nas novas composições de Joyce, como Adolescência, Anos 30, Galã Tantã e a faixa-título. "Queria dar uma continuidade a Hard Bossa, disco que só saiu na Inglaterra (ano passado, pela Far Out) e é totalmente autoral." A cantora detém os direitos de lançamento desse disco, que pensa em editar aqui pela Pau Brasil – mas só mais para a frente, já que Tudo Bonito está saindo agora no Brasil (graças ao fato de ter sido produzido em parceria com a Sony japonesa, que o lançou também na Europa e Canadá). Além do mais, ela também já está em fase de composição do novo disco para a Far Out.

Sempre pensando no Brasil
Para Joyce, não há diferença entre fazer um disco para a Inglaterra, para o Japão, ou para onde quer que seja. "Sempre penso muito no Brasil quando estou gravando", conta, lembrando que na maioria das vezes optou por estúdios e músicos cariocas. "Apesar de minha carreira no exterior ter ficado muito sólida depois de 15 anos, não pretendo – exceto em caso de extrema hecatombe – morar lá fora. Estar aqui refresca a minha música. Quando você se afasta por muito tempo, ela fica datada." A cantora diz não se preocupar com a orientação de mercado – sua música é a sua música e ponto. "Não vou entrar no mérito, mas a partir de certas coisas que deram certo – o meu trabalho, o de Marcos Valle e uns outros poucos –, alguns tentaram fazer parecido. Mas só funciona o que é real", diz.

Não é à toa: quem diria que, sem abdicar do seu estilo, Joyce acabou conquistando um admirador dos mais inusitados: Mac McCaughan, líder da banda americana de rock alternativo Superchunk. Com seu projeto solo Portastatic, ele gravou, entre outros sucessos da MPB, a música Clareana e ainda usou um dos versos da música para batizar o disco: De Mel de Melão. "Achei engraçado pra caramba. Quando os DJs de Londres começaram a se interessar pela minha música, isso não me espantou. Sempre soube que ela tinha um potencial dançante. Mas quando aconteceu o mesmo com a cena independente do rock americano, isso me bateu engraçado", conta a cantora.

Quando o Superchunk esteve em turnê pelo Brasil, os dois chegaram a conversar. "Eu perguntei: ‘Why me?’ (Por que eu?). E – além da rasgação de seda (risos) –, o Mac me falou um negócio que eu achei o maior barato: ‘Porque cada disco novo seu tem o mesmo frescor do primeiro, nunca é overproduced (superproduzido), é sempre uma coisa viva.’ E desde o meu primeiro disco tem sido sempre assim. No Feminina, que agora está completando 20 anos, eu só fiz overdub (gravação posterior) das cordas."