Lanny, o herói da guitarra, ensaia volta à cena

Problemas mentais causados pelo consumo excessivo de LSD mantiveram o grande músico do Tropicalismo fora do mercado por mais de 20 anos. Hoje, ele dá aulas, toca em bares e grava composições em fitas cassete

Carlos Calado
25/09/2000
Ouça Improvisação e Se essa rua fosse minha , com Lanny Gordin
Quem o vê saindo do modesto edifício onde vive hoje, no bairro de Santa Cecília, na região central de São Paulo, não imagina que acabou de passar por um dos músicos mais brilhantes do pop brasileiro dos anos 60 e 70. Naquela época, muitos – incluindo o vanguardista maestro Rogério Duprat – consideravam Lanny Gordin o melhor guitarrista do país. Condição que pode ser comprovada a qualquer momento, em alguns dos discos mais cultuados de Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Jards Macalé.

"Cada vez mais estou disposto a entrar novamente no sistema da mídia e no som que rola por aí. Parei com as drogas há muito tempo e já me sinto bem melhor", diz ele, empunhando uma guitarra nacional, que não faz jus à inventividade de seus improvisos e encadeamentos harmônicos. A Gibson Les Paul que o acompanhou durante décadas foi roubada alguns meses atrás, quando Lanny voltava de um ensaio noturno, na violenta Zona Leste paulistana.

De ascendência russa e polonesa, Alexander Gordin nasceu em Xangai, na China, em 28 de novembro de 1951. Viveu em Israel antes de se mudar com a família para o Brasil, em 1958. Aos 16 anos já dedilhava sua guitarra na boate do pai, a Stardust, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, ao lado de músicos tarimbados, como Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal. Também fez parte das bandas pop The Cats, The Beatniks e Os Kantikus, entre outras, antes que Rogério Duprat e os tropicalistas o descobrissem.

Já na virada para os anos 70, depois que a guitarra delirante de Lanny chamou atenção nos primeiros discos de Gal Costa e nas gravações que Gil e Caetano fizeram pouco antes de se exilarem na Inglaterra, todos o queriam em seus shows e gravações: de Erasmo Carlos, o Tremendão da Jovem Guarda, à musa máxima da MPB, Elis Regina, passando pelo soulman Tim Maia. Porém, ironicamente, o brilho dos solos de Lanny foi tão meteórico quanto fulgurante. Em 1972, ao acompanhar o sambista Jair Rodrigues numa turnê pela Europa, a descoberta do LSD (o ácido lisérgico) precipitou seu desaparecimento da cena musical. Ali começou um longo pesadelo esquizofrênico, povoado por períodos de depressão, internações em sanatórios e tratamentos à base de eletrochoques.

Homenagem de Chico César
Uma década depois, em 82, Lanny ensaiou uma primeira volta, tocando ao lado de Arnaldo Antunes, na Banda Performática, liderada pelo artista plástico Aguillar. Mais recentemente, em 1995, participou do CD Vange Milliet (Baratos Afins), a estréia da cantora paulista. Nesse disco, aparece a canção-homenagem Lanny Qual?, do paraibano Chico César, que também contou com a guitarra de Lanny em seu álbum Cuscuz Clã, de 96. Já em 99, Lanny reapareceu no álbum O Q Faço É Música (Atração), de Jards Macalé.

Hoje, além de fazer shows esporádicos em bares e casas noturnas, ao lado da cantora Célia Demézio, da banda Tills ou do guitarrista Estevão Kalaany (seu discípulo), Lanny é obrigado a dar aulas particulares para sobreviver. "Tenho três alunos atualmente. O problema é que eu sou muito apressado. Quero ensinar tudo em uma hora de aula. Aí os alunos acabam se assustando e desistem. Aos poucos vou aprendendo", conta, rindo.

Quando não está correndo atrás de trabalho, Lanny costuma fazer gravações domésticas, com um velho aparelho de som emprestado por Mário Costa, o amigo psicólogo que o hospeda há quase um ano. Usando o recurso do playback, grava duas ou até três guitarras simultâneas, solando e acompanhando-se ao mesmo tempo. As fitas, sempre que possível, acabam sendo vendidas após suas aparições nos bares e casas noturnas.

"Não tenho mágoa de nada ou de ninguém. Quando precisei, fui ajudado pelas pessoas que tinham que fazer isso: minha família e alguns amigos. Hoje só quero estar bem com todo mundo", diz o guitarrista, revelando que seu único sonho é poder comprar logo que possível outra Gibson LesPaul. Quem a merece mais do que Lanny Gordin?



Leia a seguir os melhores trechos da entrevista exclusiva de Lanny à CliqueMusic.

O começo
"Cheguei ao Brasil com seis anos de idade. Minha avó me ensinou um pouco de piano, mas estudei pouco porque esse não era meu instrumento. Eu gostava de tocar sozinho, de criar minha própria música. Não me acostumava a ter aulas, a aprender regras. Depois que repeti duas vezes o primeiro ano colegial, meu pai me disse: ‘Você não tem jeito para estudar. Seu negócio é música.’ E me deu meu primeiro violão, aos 13 anos. Fiquei superfeliz porque ele havia acertado."

Escola real
"Sou autodidata. Alguns guitarristas me deram algumas dicas, como o Aires, que não é muito conhecido, e o Heraldo do Monte. Os dois trabalhavam na boate Stardust. Foi o Heraldo que me ensinou a primeira sequência de blues. Aprendi tocando sozinho e em bailes que eu fazia no Fasano, na avenida Paulista. A boate foi a minha escola de guitarra e contrabaixo."

Versatilidade
"Meu pai percebeu minha noção musical e começou a comprar discos de guitarristas de jazz, como Wes Montgomery, Kenny Burrell, Jim Hall e Joe Pass. Os Beatles também me influenciaram muito, assim como Jimi Hendrix e a banda Cream. Eu ouvia música italiana, francesa, norte-americana. Meu pai dizia: ‘Você precisa ser versátil, tocar todos os estilos.’ Eu tinha discos de MPB, samba, jazz, rock, valsa, até de música clássica."

Duelos musicais
"Eu sempre ia visitar o Serginho dos Mutantes, na casa dele, na Pompéia. Entre os músicos, ele era considerado o solista mais rápido do país. E eu era o que fazia mais acordes por segundo. As pessoas estimulavam a competição, falavam em duelos, mas não ligávamos para isso. Gostávamos de tocar juntos."

Favorito de Duprat
"Conheci o Rogério Duprat no estúdio da RCA, gravando o primeiro disco da Gal. Batemos um papo e eu disse a ele: ‘Você deixa o último canal de gravação para mim, que eu quebro o galho’. Ele respondeu: ‘Então toca essa porra. Faça o que você quiser.’ Como eu tenho senso intuitivo, já costumo pegar as coisas de cara. Logo que eu gravei a primeira vez, ele gritou: ‘Corta! Pode soltar o disco na praça!’ E então me disse: ‘Você é o escolhido. Vai gravar comigo por um bom tempo.’ Fiz muita coisa com o Rogério. Ele é um grande arranjador. Se morasse nos Estados Unidos, certamente iria fazer muito sucesso."

Hermeto doidão
"Em 1968, a Rhodia teve a idéia de formar um conjunto para os desfiles e shows que promovia. Nessa banda, a Brazilian Octopus, eu tocava com o Hermeto Pascoal, com o guitarrista Alemão (Olmir Stockler) e com o contrabaixista Nilson da Matta, que hoje mora nos Estados Unidos. Era fascinante tocar com o Hermeto. Ele sempre foi doido."

Gal a Todo Vapor
"Lembro de ter tocado Pérola Negra, naquele show da Gal, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1972. No meio da temporada, fui convidado pelo Jair Rodrigues a viajar com com ele para o Midem, na França, junto com os Originais do Samba. Por isso, o Pepeu [Gomes] entrou em meu lugar no show da Gal. Só que no disco, eles fizeram uma mixagem: em alguns compassos sou eu; em outros é o Pepeu que toca. Fizeram uma baboseira muito bem feita."

O primeiro LSD
"Tomei em Londres meu primeiro ácido, oferecido por uns hippies que conheci na rua. Resolvi ver o que era aquilo, por curiosidade. Vi tudo colorido e pensei que tinha encontrado meu mundo, um mundo só de paz e amor. Os outros seis ácidos eu tomei em São Paulo, interessado em entrar naquele mundo outra vez. O segundo ácido foi muito estranho. O terceiro não fez efeito. Dos seguintes eu não lembro. Só no sétimo eu vi aquelas cores de novo, mas o efeito foi oposto porque eu estava me sentindo grilado naquela época. Foi uma bad trip total. Fiquei fora de mim. Pensei que ia morrer."

Viagens lisérgicas
"Por causa das viagens de ácido, fui internado três vezes no sanatório. Tomei choque elétrico, insulina e um monte de remédios. Parei com a música por um tempo. Eu tinha um violãozinho, que eu tocava aos trancos e barrancos, mas só estava interessado mesmo na verdade: queria saber o que realmente aconteceu comigo. Estou com essa pergunta na cabeça até hoje. Só o Aldous Huxley é que pode me explicar."

Na pele de Cristo
"Cheguei a queimar minha mão com uma ponta de cigarro porque eu achava que era Jesus Cristo. Geralmente, as pessoas que tomam drogas entram em estado de alucinação e começam a imaginar coisas. Hoje em dia não estou mais preocupado, porque confio em Deus e em mim mesmo. Um dia a verdade vai ser revelada."

Frustração
"Minha maior frustração é a de nunca ter tido minha própria banda. Eu nunca tinha tempo para ensaiar a minha, porque sempre era chamado para tocar em outros conjuntos ou para fazer os discos de outros."

Esquizofrenia
"Tenho uma doença mental chamada esquizofrenia. Ainda bem que o grau é pequeno e eu posso lidar com ela. Ela não me domina. O psiquiatra me disse que não é nada grave: apenas um estado de espírito que eu preciso aprender a controlar. Nunca fiquei preocupado com isso. Doença é uma forma de deixar o paciente grilado. Quando ela é bem explicada, o doente até se sente bem."

Gosto eclético
"Atualmente, gosto de ouvir um pouco de tudo: John McLaughlin, Fernanda Abreu, John Coltrane, Hermeto Pascoal, Cesaria Évora, Chico Science. Cheguei a parar um pouco no tempo, mas percebi que preciso acompanhar a evolução da música."

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