Lenine: um canibal universal guiado pelo instinto

Compositor pernambucano lança seu terceiro disco solo, criação coletiva repleta de convidados especiais vindos de várias partes do mundo

Marco Antonio Barbosa e Mônica Loureiro
16/03/2002
O pernambucano Lenine freqüentou com assiduidade, durante todo o ano passado, as páginas de cultura dos principais órgãos de imprensa brasileiros, de um modo até inaudito em sua carreira. O motivo era a crescente expectativa sobre seu terceiro disco solo, que - segundo notícias ventiladas a torto e a direito pela gravadora do cantor, a BMG-Brasil - seria um trabalho que chegaria para revolucionar a MPB. Gravado em estúdios brasileiros e norte-americanos, carregado de participações especiais e flertando abertamente com experimentalismos sonoros, este seria o disco com o qual Lenine iria deslanchar rumo à "primeira divisão" da MPB. Hype de gravadora, ou revolução genuína, o que estaria por trás de Falange Canibal, o novo álbum do pernambucano, e um dos segredos mais divulgados dos últimos tempos?

A antropofagia sugerida no titulo dá uma pista. O nome Falange Canibal remete ao final dos anos 80, num pequeno bar na Lapa, onde aconteciam semanalmente encontros de artistas. Eram amigos que discutiam novas formas de fazer poesia, teatro, música e tudo o que aparecesse. O nome do grupo era o mesmo do título do disco. Lenine cita alguns dos motes do grupo que acabaram, de algum modo, norteando seu novo trabalho. "Era uma pura aglutinação de experiências, uma espécie de tudo-ao-mesmo-tempo-agora. E também era um grupo que se guiava pela intuição, totalmente, e minha música também é assim. Coube direitinho no espírito do disco este título e além do mais se encaixa na minha visão de trabalho. Desde meu primeiro disco, mantenho o conceito de que gravar é um pretexto para fazer músicas com os amigos."

Conforme foi amplamente divulgado, Falange Canibal foi gravado ao longo do segundo semestre de 2001 entre o Brasil e os Estados Unidos. Uma míriade de convidados especiais deixa sua marca no álbum. Parceiros antigos (Bráulio Tavares, Lula Queiroga, Dudu Falcão, Sérgio Natureza, Carlos Rennó e Paulo César Pinheiro) juntam-se a novos compadres como Lobato e Xandão (do Rappa), a Velha Guarda da Mangueira, Eumir Deodato, Frejat, Henrique Portugal e Haroldo Ferreti (ambos do Skank) e nomes internacionais - dos quais o mais destacado é o grupo americano de hard rock Living Colour. "Com exceção do pessoal do Living Colour, que chegou até a mim, todos são amigos com quem, de uma forma ou de outra, já dividi algum trabalho", fala Lenine. Segundo o compositor, a inquietação o levou a gravar o disco aqui e lá fora. "Queria perseguir estes encontros musicais sem fronteiras, juntando amigos e nações bem diferentes. Tem a ver com um certo 'nervosismo' criativo que tenho e que também remete à época da Falange Canibal."

Pode parecer um verdadeiro balaio de gatos musical, mas Lenine garante que o disco prossegue o caminho já traçado nos trabalhos anteriores (O Dia em que Faremos Contato ouvir 30s, de 1997, e Na Pressão ouvir 30s, 99). "Principalmente por ter mantido essa idéia de trabalhar com vários parceiros, acho que Falange Canibal traz uma continuidade para meu trabalho. É como se fosse uma criação socialista", diz o cantor. "E também porque continuo mantendo o meu próprio ritmo interno, quase como um artesão enfiado em um sistema industrial de produção de música", completa.

As canções seguem o peculiar diálogo que Lenine trava entre o pop e as várias tradições (Tropicália, regionalismo pernambucano e mais), mirando no universalismo. Daí vêm fragmentos ("cacos", como Lenine gosta de dizer) de samba (Caribantu, com a Velha Guarda), rock (O Homem dos Olhos de Raio-X, com o Living Colour), ciranda (Nem o Sol, Nem a Lua, Nem Eu), blues (O Silêncio das Estrelas), ritmos caribenhos (Rosebud)... A sonoridade está mais seca, sem a característica batida do violão do compositor. "Tem algumas canções no disco que eu chamo de músicas de rua, mais cruas, feitas só com base no groove. Mais espontâneas. Nunca foi uma preocupação consciente esta assinatura do violão. Algumas das músicas do disco, como Lavadeira do Rio e Caribantu, foram compostas sem nem pegar no violão. Tenho documentado, nas demos do disco, versões diet de todas elas, ainda mais desconstruídas", explica Lenine. Neste contexto mais descarnado (canibalizado?), encaixam-se experimentalismos mais radicais como No Pano da Jangada - na qual o único "instrumento" é o próprio corpo de Lenine, batucando pés e mãos e criando ritmos com a boca. "É som naïf, primitivo. Nada mais primitivo do que groove de boca, instrumentos no próprio corpo", considera o pernambucano.

Canibalismo, experimentações e gregarismos à parte, voltemos à questão inicial: que dividendos Falange (que será lançado em 30 países além do Brasil) vai render à carreira de Lenine? O compositor, incensado pela crítica, ainda não viu este prestígio se traduzir em sucesso de massa. "Tenho consciência que não sou um profissional de vendagem", diz, lembrando que Na Pressão não ultrapassou as 90 mil cópias vendidas. "Mas estou muito bem-resolvido em minha relação com a BMG, já que tenho liberdade total no meu trabalho; entrego o disco prontinho para eles, com capa e tudo", afirma. Dizendo-se "despreocupado" com números de vendagem, ele agora mira na carreira no exterior. "Tenho dois meses para a digestão do disco e só aí vou para a estrada. em 2003 vou ao exterior. Eu me planejo sempre assim: um ano no Brasil, um ano fora e um ano para viver e curtir o nucleo familiar", fala Lenine, que passou boa parte do ano de 2000 em uma elogiada excursão pela Europa. Esse esquema de trabalho - mais uma vez, distante do padrão de mercado - se encaixa com a visão artística do compositor. "Cheguei à conclusão que sou um artista bissexto, pois antes de ser intérprete, sou compositor. E só gravo 30% da minha produção. Eu me considero um operário da canção. Além disso, acho que não teria competência para trabalhar assim, fazendo um disco por ano. Mas não sou exemplo de nada; sou um artesão no meio tecnológico."