Livro esquadrinha as mil faces de Renato Russo

O Trovador Solitário, do jornalista e escritor Arthur Dapieve, reúne as histórias do líder da Legião Urbana, a figura mais carismática, turbulenta e contraditória do BRock

Tárik de Souza
26/08/2000
O perfil do líder da Legião Urbana, Renato Russo, um carioca avesso ao protótipo – praia, esportes, rodas de chope e batucadas – foi (bem) entregue a outro carioca da mesma filiação estética. Ou seja, amante, pela ordem, de rock progressivo, punk, cinema, música erudita, além de filosofia (inclusive a de botequim) e metafísica pop. Ex-baterista de uma banda roqueira, o jornalista e escritor (e também devorador de livros) Arthur Dapieve, 37, além de várias entrevistas com o biografado esteve presente ao fatídico show de seu grupo, o Legião Urbana, no estádio Mané Garrincha em Brasília, em 1988, que terminou em 385 atendimentos médicos, 60 detidos pela polícia, 64 ônibus depredados e um processo do Departamento de Educação Física, Esportes e Recreação do Distrito Federal contra a banda. Foi Dapieve também o jornalista escolhido quando o cantor decidiu falar publicamente de sua homossexualidade, uma saída do armário que poderia resultar em desastre para sua imagem de ídolo pós-adolescente.

Renato Russo – O Trovador Solitário (Editora Relume Dumará, 180 pgs., R$ 15, editado dentro da série Perfis do Rio) é um pequeno grande livro que dá conta de perfilar a figura contraditória, multifacetada e turbulenta de RR, um introspectivo que se transformava no palco num misto incendiário de Ian Curtis (New Order) e Morrissey (The Smiths). Detalhista, Dapieve esquadrinha até idiossincrasias de Renato com seus ídolos como a de desdenhar o lado esportivo de Morrissey. "Ele não pode ser deprimido porque joga basquete", reclamou com amigos. A noite de autógrafos do livro acontece na próxima quarta-feira, dia 30, a partir das 20h, na Fundação Planetário – Espaço Museu do Universo, no Rio de Janeiro.

Carioca, nascido no Humaitá e criado no bairro do Bananal, na Ilha do Governador, com passagens por Queens, em Nova Iorque e Brasília, Renato começou a deixar de ser Manfredini Jr., ou Junior (como a família ainda o chama até hoje) quando, em 1975, contraiu uma doença rara chamada epifisiólise. Ela dissolveu a cartilagem que ligava seu femur esquerdo à bacia. Erros médicos, pinos colocados fora do lugar, dores intensas, um ano e meio de sofrimento e reclusão fizeram nascer o personagem Eric Russell, lider da banda da imaginária 42th Street Band. A partir daí, da coincidência de sobrenomes de escritores que admirava como Bertrand Russell, Jean-Jacques Rousseau e do pintor primitivista Henri Rousseau, nascia o personagem Renato Russo.

Provocações em plena ditadura
Logo no primeiro grupo de que participou, o Aborto Elétrico (nome de origem controversa como vários detalhes biográficos do artista que começava a escrever sua lenda), o pai, bancário, na platéia, sentiu firmeza. "Filho, vocês já tem uma postura profissional, parabéns". Mas soltava suas farpas: "Você vai acabar preso e eu não vou tirar você". Apesar do nome provocativo da banda surgida em plena ditadura e de letras como Veraneio Vascaína (recado contra a repressão policial) ou Geração Coca-Cola (retrato dos filhos da ditadura), Renato seguiu em frente. Fluente em inglês (fez o discurso da Cultura Inglesa na recepção ao Príncipe Charles em 1978), o admirador do rock progressivo que queria ser Keith Emerson (do ELP) encantou-se com o punk de John Lydon do PIL (pós- Sex Pistols).

A cena de filhos de diplomatas, militares e políticos no centro do poder, de onde brotariam da Plebe Rude ao Capital Inicial moldou o caldo de cultura do trovador solitário, persona assumida por Renato quando saiu do Aborto Elétrico após várias brigas. Encarapitado no banquinho-e-violão muito mais para Bob Dylan que João Gilberto, ele abria furiosos shows punks desfiando letras quilométricas com 159 versos (caso de Faroeste Caboclo) ou apenas 73 de (Eduardo e Mônica). Mas tinha o respeito da galera.

Em 1982, com a idéia de fazer uma música um pouco mais elaborada que a do Aborto Elétrico, Renato fundou o Legião Urbana com Marcelo Bonfá (ex-Metralhaz), Eduardo Paraná (guitarra) e Paulo Paulista (casiotone). Logo na estréia, junto com a Plebe Rude, num festival de rock no parque agropecuário de Patos de Minas, as bandas de gente esquisita e calça rasgada foram detidas para averiguações. Quase se cumpria a profecia do pai de Renato. Modificações no elenco do Legião motivaram a admissão de Dado Villa Lobos que trocou pelo rock um curso de Ciências Sociais da UNB. Mais adiante, entraria Negrete, carioca de São Cristóvão, filho de um sargento, o único de classe média baixa do grupo (que acabaria saindo antes do fim), um careca que desprezava roqueiros cabeludos.

Dessa alquimia meio estranha surgiu a banda mais carismática do BRock, que vendeu 12 milhões de discos em 15 anos, capitaneada pela figura messiânica de Renato, que Dapieve disseca no livro. Desde a tentativa de suicídio, que não passou de um leve corte nos pulsos, a bebedeiras abissais e até a heroína nos canos já na "fase Kurt Cobain" do disco V (1991). Também a revelação da homossexualidade do cantor à mãe, aos 18 anos, e seu posterior anúncio público ("para acabar com o preconceito"), o preservado filho Giuliano, a descoberta de que estava infectado pelo vírus da Aids e a fase final de isolamento. Escrito com uma densidade de informações que não embarga a fluência da leitura, o livro não sonega ao leitor nenhuma gota do sexo, drogas e rock’n’roll destilado pelo trovador solitário. Alguém talhado para conduzir legiões urbanas ao nirvana pop.

Leia também: