Lucho Gatica abraça a nata da MPB

Cantor grava duetos com grandes intérpretes da MPB, como Nana Caymmi, João Bosco e Leny Andrade, e diz que o brasileiro gosta de bolero porque é um povo sentimental

Rodrigo Faour
01/04/2001
O cantor Lucho Gatica
Ava Gardner adorava Ninguém Me Ama — clássico da MPB, de Antonio Maria e Fernando Lobo, lançado por Nora Ney em 1952 ouvir 30s. Quem conta essa fofoca deliciosa é o lançador dos maiores boleros do mundo, o chileno Lucho Gatica. Aos 72 anos, de passagem pelo Brasil para promover a caixa Dançando ao Som de Grandes Boleros — na qual interpreta a maioria dos clássicos do gênero, sozinho ou acompanhado de grandes nomes da MPB — ele relembra que empunhou seu violão e tocou o belo samba-canção para a linda atriz hollywoodiana. Essa é uma das muitas vezes em que a MPB e o Brasil cruzaram seu caminho musical. Uma trajetória de sucesso mundial, de casas lotadas em todos os países da América Latina, mais Europa, Estados Unidos e Japão.

La Barca, Sabra Dios, Siceridad, Tu Me Acostumbraste, Sabor a Mi, Encandenados e Esta Noche Vi Llover são alguns dos boleros lançados por ele. Isso sem contar que Besame Mucho e a antiga Contigo En La Distancia cristalizaram-se no mundo inteiro graças à sua interpretação. Como os brasileiros também são muito chegados num bolero, Roberto Menescal teve a idéia de reunir o Rei do Bolero com Nana Caymmi, Leny Andrade, Emílio Santiago, João Bosco, Pery Ribeiro, entre outros, incluindo até mesmo seu contemporâneo Cauby Peixoto no CD Entre Amigos, só de duetos. Mas não é só.

A caixa lançada pela empresa Reader's Digest — vendida através dos endereços www.selecoes.com.br e www.1000premios.com.br — tem ainda mais três CDs: El Enamorado — com Lucho relendo hoje seus grandes sucessos — Brasil Bolero, com os vários intérpretes da MPB regravando boleros brasileiros e, por fim, um último, Bolero ao Redor do Mundo, recheado de gravações originais e clássicas de ícones do gênero, como Pedro Vargas, Leo Marini e do próprio Lucho.

Estréia no Brasil foi no Copacabana Palace
Ary Barroso, Lupicínio Rodrigues e Dorival Caymmi estão entre os compositores nacionais preferidos de Lucho. Não por acaso Pra Machucar Meu Coração, Nunca e Não Tem Solução estão entre as canções brasileiras que o cantor adora. Aliás, ele chegou a gravar esta última, bem como outros standards da MPB: Risque, Casinha Pequenina, a referida Ninguém Me Ama e, no atual CD, Alguém como Tu. Entre os intérpretes de bolero no Brasil, Lucho destaca Roberto Luna. "Ele já fez um disco inteiro com meu repertório", conta Lucho, de um confortável sofá no Copacabana Palace (RJ), onde fez sua estréia no Brasil.

"Foi aqui no Golden Room do Copa, em 1955, que estreei no Brasil. Acabei ficando um mês em temporada. Também atuei nas rádios Nacional e Mundial, programas de TV no Canal 5... Depois fui embora para o México e só voltei cerca de dez anos depois. Aí, fiz mais sucesso ainda, pois já tinha mais boleros famosos no repertório, como El Reloj, La Barca, La Puerta...", enumera o cantor, que chegou a atuar em 10 filmes no México, país onde fixou residência por 30 anos. Há 14, porém, reside em Los Angeles, com sua terceira esposa. Sempre viajando ao redor do mundo, já veio diversas vezes ao Brasil e arrisca um palpite sobre a receptividade de sua música por aqui. "Assim como no México, Cuba e Porto Rico, o bolero faz sucesso no Brasil pois são países que têm um temperamento sentimental", ensina.

Apesar de ter ficado um pouco em baixa quando o rock tomou a cena, nos anos 60 e 70, Lucho nunca perdeu a majestade. E recentemente teve o impulso dado por jovens como Luiz Miguel. "Ele fez um disco com 16 sucessos meus", orgulha-se. "A força do bolero ainda é impressionante na América Latina, ainda mais depois que Luis Miguel, trios colombianos e vários garotos no México também decidiram gravá-los", conta. Lucho não é do tipo que fala mal dos novos ritmos, mas reconhece que prefere o estilo melodioso dos intérpretes mais tradicionais. "Respeito o pop mas fico com a minha música".

Cantor conviveu com os maiores de sua época
Essa afirmativa não é para menos. Lucho ouviu e conviveu com alguns dos maiores nomes da música internacional. Conheceu Frank Sinatra, Edith Piaf, Ella Fitzgerald, Caterina Valente, Nat King Cole e tantos outros. Do ramo latino então, nem se fala. Conviveu com Perez Prado, Elvira Rios, Adelina Garcia, com seus inspiradores — Pedro Vargas, Leo Marini e Gregorio Barrios -, os compositores Álvaro Carrillo, Agustín Lara, Consuelo Velasquez e Armando Manzanero, fora o maestro escocês radicado em Londres Roberto Inglez, que deu um impulso definitivo à sua carreira nos idos de 1954.

"Ele tocava piano e era um grande arranjador. Regia uma orquestra de 60 músicos. Era muito tranqüilo. Eu queria gravar com ele. Comuniquei à Odeon, minha gravadora, que aceitou a idéia. Porém, quando fui falar com o Roberto ele disse que poderia gravar com ele, mas que estava sem tempo de fazer os arranjos naquele momento. Então ele me sugeriu que eu deixasse a voz gravada, que depois faria os arranjos. Gravei então quatro músicas: Besame Mucho, O Samba Me Chama, Não Tem Solução e Las Muchachas de Plaza de Espanha. Foi um sucesso enorme na Argentina, Chile, Uruguai... Tanto que fizemos juntos uma turnê por esses países", recorda Lucho. Roberto Inglez acabou fixando-se no Chile no fim da vida e acabou morrendo lá ao lado de uma mulher chilena. "Morreu dormindo sem conhecer o filho, já que sua mulher estava grávida".

Bronca em Eydie Gorme
Depois de Roberto, Lucho conheceu os compositores maiorais do bolero. Agustín Lara, por exemplo. "Gravei um disco só com músicas do Agustín. Ele é o compositor de boleros mais importante do mundo, como Solamente una Vez e Maria Bonita, isso sem contar Granada, que até Frank Sinatra gravou. Compôs a Suíte Espanhola sem conhecer a Espanha, já nasceu na Cidade do México". A seguir, Lucho também travou amizade com Álvaro Carrillo, outro mexicano de Guajaca, que era engenheiro civil, além de compositor. "Ele me mostrou Amor Mio e Sabra Dios. Mais tarde, Sabor a Mi. Essa última eu estava cantando em Barcelona quando um músico da orquestra me mandou ir procurar o Álvaro porque era a melhor música que ele já tinha composto. E não é que era mesmo?", lembra.

Entre as mil e uma recordações de Lucho estão o contato com a voz noturna de Elvira Rios ("Tinha uma personalidade impressionante. Fiquei louco quando a vi ao vivo pela primeira vez. Anos mais tarde, atuamos juntos num programa de rádio, algo que nunca pensei que seria possível acontecer") e a bronca que deu em Eydie Gorme, quando esta estava gravando o bolero Eres Tu, só que deixando a emoção atrás da porta. "Disse a ela que tinha que colocar mais emoção naquilo. Briguei com ela durante a gravação, que ela tinha que usar o mesmo temperamento e coração que ela colocava nas canções americanas que gravava. Quando comparou as duas versões que tinha gravado e viu a diferença impressionante disse: "Você tem razão!"