Maria Alcina, um furacão pós-tropicalista
Cantora que chegou a responder processo por comportamento 'subversivo' e lançou diversas pérolas de grandes compositores atualmente está em cartaz pelos palcos brasileiros com o show Alma Feminina
Rodrigo Faour
13/09/2000
Março de 2000. Após 20 anos sem cantar no Rio, uma cantora voltava ao bairro de Copacabana, que a projetara em memoráveis shows da boate Number One – fazendo parte do circuito cult dos anos 70. A platéia que a esperava era inusitada, predominantemente jovem, na moderna boate gay Le Boy. De repente, aparece aquela mulata de feições alegres, um pouco mais gordinha e o vozeirão masculino começa a tilintar – forte e impactante, como nos velhos tempos. Não havia dúvida: era Maria Alcina. "Naquele show, as pessoas estavam um pouco surpresas. As mais jovens, que não me conheciam, esperavam algo diferente e ficaram observando para ver o que era. Mas deu certo, fui muito respeitada!", vibra a cantora que saiu do palco com empolgados pedidos de bis e cantou o samba Alô, Alô à capella.
Maria Alcina foi um tremendo furacão pós-tropicalista na MPB dos anos 70. Depois de gravar um compacto em 71 com a emblemática Mamãe Coragem, que Gal Costa cantava no LP Tropicália, ela estouraria no ano seguinte, vencendo o VII Festival Internacional da Canção, na TV Globo, com uma apoteótica interpretação de Fio Maravilha (Jorge Ben). Naquele tempo, Alcina rompia com a estética comportamental, com sua voz de homem, maquiagem extravagante, roupas irreverentes e gestos carnavalescos. Num de seus shows na boate Number One, certa vez, um admirador lhe deu uma rosa durante a apresentação. Ela não teve dúvidas: devorou-a na frente do público e lambeu os beiços.
Proibida em todo Brasil
Para se ter uma idéia do que Maria Alcina representava, vale dizer que um belo dia, em 1974, a cantora ligou a TV e assistiu perplexa a uma notícia bastante desagradável. "Soube pela televisão que tinha sido censurada em todo território nacional. Depois, tive que responder processo. Levaram-me para uma sala com muitos livros, na maioria proibidos, que haviam sido apreendidos, e um cara me perguntou o que significava esse ou aquele gesto que eu fazia. E, na verdade, era apenas o meu jeito de cantar. Era minha expressão que na época causou espanto muito grande", relata.
O impacto que o fenômeno Maria Alcina causou não era para menos. Afinal, em 72, quando ela surgiu, os Secos & Molhados ainda não haviam pintado a cara ou rebolado no palco, e as debochadas Frenéticas somente cinco anos depois mostrariam um lado mais lânguido das mulheres. "Em termos femininos, eu era diferente e tudo que era diferente incomodava. Eu quebrava uma série de mitos femininos. Surgi na época da ditadura com um comportamento diferenciado que era anti-tudo. Acabei censurada e proibida de tocar onde quer que fosse, fui tirada do ar. De rádio, TV e shows. Era um momento em que o comportamento era motivo para condenação e que artista corria da polícia."
Foram-se os 70 e com eles a inquietação. Haveria espaço para Alcina nos yuppies anos 80 e 90? Resposta: não. De lá para cá, a cantora restringiu suas apresentações a pequenas casas e restaurantes e, como Aracy de Almeida, passou a ser jurada de TV – atualmente pode ser vista no Programa de Ed Banana, na TV Record. Mas quem possui sua pequena, porém marcante, discografia (cinco LPs e cinco compactos), sabe que ela fez gravações memoráveis.
Maria Alcina lançou músicas de João Bosco e Aldir Blanc (Kid Cavaquinho, Beguine Dodói, Amigos Novos e Antigos), Eduardo Dusek (Folia no Matagal – dois anos antes da gravação de Ney Matogrosso), Rita Lee (Tum-Tum), reviu Noel Rosa (Coração e Seu Jacinto) e o repertório das divas do rádio, de forma totalmente anárquica, eletrizando arranjos e rindo ou gritando conforme a música pedisse, em números originalmente criados por Marlene (E Tome Polca), Emilinha Borba (Paraíba), Lana Bittencourt (Haja o Que Houver), Aracy de Almeida (Escandalosa), Bando da Lua (Maria Boa) e, claro, Carmen Miranda (Alô, Alô e Como Vaes Você). Eram todas gravações enérgicas e vibrantes.
Yes, bananas
Falando em Carmen Miranda, em 95, um convite movimentou a vida de Maria Alcina. Nelson Motta incluiu Alô, Alô num CD-tributo à Pequena Notável. A faixa abria o disco e estava ao lado dos maiores nomes da MPB, cmo Gal, Bethânia, Elis e Marisa Monte. "Fizemos dois shows no Lincoln Center com participação de Aurora Miranda, Marília Pêra e grande elenco", diz ela, que ficou seis meses em cartaz também em Nova York, com o espetáculo Eles cantam ela, que lembrava os 50 anos da morte da cantora. Em ambos, a cantora foi aclamada pela crítica americana, chamada de "a Carmen dos anos 90".
De fato, a semelhança de Alcina com Carmen está não só na indumentária carnavalesca como na alegria que consegue transmitir, seja nos shows ou nos frios estúdios. Por isso mesmo, ela sempre inclui canções da Pequena Notável em seus shows, como em Alma Feminina, no qual relê pepitas desta e de outras cantoras, de várias fases da MPB. Além de Carmen, que é lembrada com Alô, Alô, O Tic-Tac do Meu Coração (em versão bossa nova) e um pot-pourri carnavalesco, ela canta músicas do repertório de Elis Regina (Tiro ao Álvaro), Clara Nunes (A Deusa dos Orixás, com direito a um "adereço de cabeça" que foi lhe dado de presente pela própria Clara), Dircinha Batista (PeriquitinhoVerde e O Primeiro Clarim) e Dalva de Oliveira (Bandeira Branca), além de seus antigos sucessos. O show Alma Feminina será apresentado amanhã, dia 14, às 14h, no Memorial da América Latina (em São Paulo), dia 17 de outubro no projeto MPB nas Bilbiotecas em Tatuapé (SP) e dia 28 de outubro em praça pública no município de Campos (RJ).
Depois de tentar voltar ao disco com o independente Bucanera, em 92, com canções inéditas de Belchior (faixa-título), Jorge Ben Jor (Sem Vergonha), entre outros, ela, por ora, prefere fazer seus shows para um público pequeno, porém honesto, do que "se corromper e gravar musiquinhas medonhas". "Tenho feito shows em casas de cultura, Sescs e boates legais e o público que vai me ver já sabe o que vai encontrar. De um modo geral, acho que o povo emburreceu. Mas prefiro cantar para dez que me entendam do que para 3.000 cantando o que está sendo tocado por aí hoje", dispara.
Principais gravações:
Mamãe Coragem (Caetano Veloso/Torquato Neto), 1971
Fio Maravilha (Jorge Ben), 1972
Alô, Alô (André Filho), 1973
Mulher Rendeira (Zé do Norte), 1973
Maria Boa (Assis Valente), 1973
E Tome Polca (José Maria de Abreu/Luiz Peixoto), 1974
Kid Cavaquinho (João Bosco/Aldir Blanc), 1974
Haja o Que Houver (Fernando César/Nazareno de Brito), 1979
Torresmo à Milaneza (Adoniran Barbosa/Carlinhos Vergueiro) – Com Adoniran Barbosa, 1979
Sem Vergonha (Jorge Ben Jor), 1992
Maria Alcina foi um tremendo furacão pós-tropicalista na MPB dos anos 70. Depois de gravar um compacto em 71 com a emblemática Mamãe Coragem, que Gal Costa cantava no LP Tropicália, ela estouraria no ano seguinte, vencendo o VII Festival Internacional da Canção, na TV Globo, com uma apoteótica interpretação de Fio Maravilha (Jorge Ben). Naquele tempo, Alcina rompia com a estética comportamental, com sua voz de homem, maquiagem extravagante, roupas irreverentes e gestos carnavalescos. Num de seus shows na boate Number One, certa vez, um admirador lhe deu uma rosa durante a apresentação. Ela não teve dúvidas: devorou-a na frente do público e lambeu os beiços.
Proibida em todo Brasil
Para se ter uma idéia do que Maria Alcina representava, vale dizer que um belo dia, em 1974, a cantora ligou a TV e assistiu perplexa a uma notícia bastante desagradável. "Soube pela televisão que tinha sido censurada em todo território nacional. Depois, tive que responder processo. Levaram-me para uma sala com muitos livros, na maioria proibidos, que haviam sido apreendidos, e um cara me perguntou o que significava esse ou aquele gesto que eu fazia. E, na verdade, era apenas o meu jeito de cantar. Era minha expressão que na época causou espanto muito grande", relata.
O impacto que o fenômeno Maria Alcina causou não era para menos. Afinal, em 72, quando ela surgiu, os Secos & Molhados ainda não haviam pintado a cara ou rebolado no palco, e as debochadas Frenéticas somente cinco anos depois mostrariam um lado mais lânguido das mulheres. "Em termos femininos, eu era diferente e tudo que era diferente incomodava. Eu quebrava uma série de mitos femininos. Surgi na época da ditadura com um comportamento diferenciado que era anti-tudo. Acabei censurada e proibida de tocar onde quer que fosse, fui tirada do ar. De rádio, TV e shows. Era um momento em que o comportamento era motivo para condenação e que artista corria da polícia."
Foram-se os 70 e com eles a inquietação. Haveria espaço para Alcina nos yuppies anos 80 e 90? Resposta: não. De lá para cá, a cantora restringiu suas apresentações a pequenas casas e restaurantes e, como Aracy de Almeida, passou a ser jurada de TV – atualmente pode ser vista no Programa de Ed Banana, na TV Record. Mas quem possui sua pequena, porém marcante, discografia (cinco LPs e cinco compactos), sabe que ela fez gravações memoráveis.
Maria Alcina lançou músicas de João Bosco e Aldir Blanc (Kid Cavaquinho, Beguine Dodói, Amigos Novos e Antigos), Eduardo Dusek (Folia no Matagal – dois anos antes da gravação de Ney Matogrosso), Rita Lee (Tum-Tum), reviu Noel Rosa (Coração e Seu Jacinto) e o repertório das divas do rádio, de forma totalmente anárquica, eletrizando arranjos e rindo ou gritando conforme a música pedisse, em números originalmente criados por Marlene (E Tome Polca), Emilinha Borba (Paraíba), Lana Bittencourt (Haja o Que Houver), Aracy de Almeida (Escandalosa), Bando da Lua (Maria Boa) e, claro, Carmen Miranda (Alô, Alô e Como Vaes Você). Eram todas gravações enérgicas e vibrantes.
Yes, bananas
Falando em Carmen Miranda, em 95, um convite movimentou a vida de Maria Alcina. Nelson Motta incluiu Alô, Alô num CD-tributo à Pequena Notável. A faixa abria o disco e estava ao lado dos maiores nomes da MPB, cmo Gal, Bethânia, Elis e Marisa Monte. "Fizemos dois shows no Lincoln Center com participação de Aurora Miranda, Marília Pêra e grande elenco", diz ela, que ficou seis meses em cartaz também em Nova York, com o espetáculo Eles cantam ela, que lembrava os 50 anos da morte da cantora. Em ambos, a cantora foi aclamada pela crítica americana, chamada de "a Carmen dos anos 90".
De fato, a semelhança de Alcina com Carmen está não só na indumentária carnavalesca como na alegria que consegue transmitir, seja nos shows ou nos frios estúdios. Por isso mesmo, ela sempre inclui canções da Pequena Notável em seus shows, como em Alma Feminina, no qual relê pepitas desta e de outras cantoras, de várias fases da MPB. Além de Carmen, que é lembrada com Alô, Alô, O Tic-Tac do Meu Coração (em versão bossa nova) e um pot-pourri carnavalesco, ela canta músicas do repertório de Elis Regina (Tiro ao Álvaro), Clara Nunes (A Deusa dos Orixás, com direito a um "adereço de cabeça" que foi lhe dado de presente pela própria Clara), Dircinha Batista (PeriquitinhoVerde e O Primeiro Clarim) e Dalva de Oliveira (Bandeira Branca), além de seus antigos sucessos. O show Alma Feminina será apresentado amanhã, dia 14, às 14h, no Memorial da América Latina (em São Paulo), dia 17 de outubro no projeto MPB nas Bilbiotecas em Tatuapé (SP) e dia 28 de outubro em praça pública no município de Campos (RJ).
Depois de tentar voltar ao disco com o independente Bucanera, em 92, com canções inéditas de Belchior (faixa-título), Jorge Ben Jor (Sem Vergonha), entre outros, ela, por ora, prefere fazer seus shows para um público pequeno, porém honesto, do que "se corromper e gravar musiquinhas medonhas". "Tenho feito shows em casas de cultura, Sescs e boates legais e o público que vai me ver já sabe o que vai encontrar. De um modo geral, acho que o povo emburreceu. Mas prefiro cantar para dez que me entendam do que para 3.000 cantando o que está sendo tocado por aí hoje", dispara.
Principais gravações:
Mamãe Coragem (Caetano Veloso/Torquato Neto), 1971
Fio Maravilha (Jorge Ben), 1972
Alô, Alô (André Filho), 1973
Mulher Rendeira (Zé do Norte), 1973
Maria Boa (Assis Valente), 1973
E Tome Polca (José Maria de Abreu/Luiz Peixoto), 1974
Kid Cavaquinho (João Bosco/Aldir Blanc), 1974
Haja o Que Houver (Fernando César/Nazareno de Brito), 1979
Torresmo à Milaneza (Adoniran Barbosa/Carlinhos Vergueiro) – Com Adoniran Barbosa, 1979
Sem Vergonha (Jorge Ben Jor), 1992