Maria Bethânia inaugura sua Quitanda
Baiana apresenta seu selo, parceria com a Biscoito Fino; estréia traz CDs de D.Edith do Prato e da própria Bethânia
Marco Antonio Barbosa
23/09/2003
Em mais uma demonstração de independência artística e mercadológica, Maria Bethânia criou seu próprio selo, em parceria com a gravadora Biscoito Fino. Só que o evento que a baiana promoveu para apresentar à imprensa sua nova empreitada - que leva o nome de Quitanda - acabou virando também uma celebração do sucesso da própria Biscoito Fino. Sucesso este que se deve, em grande parte, à própria Bethânia. A entrevista coletiva, concedida na sede da gravadora (no Rio de Janeiro), também serviu para que a imprensa testemunhasse a entrega do primeiro disco de ouro da curta (pouco mais de dois anos) trajetória da gravadora - pelas 120 mil cópias vendidas de Maricotinha ao Vivo, primeiro álbum de Bethânia pela BF.
O Quitanda recebeu este nome por influência da arquiteta Lina Bardi. "Uma frase da Lina sempre me chamou a atenção: ela dizia que 'todo mundo tem que ter sua própria quitanda'; um espaço particular, seu, para fazer suas coisas, longe da profissão, da carreira", afirma Maria Bethânia. Mas o nome não era o que a cantora queria. "Tenho paixão pela cultura indígena brasileira e queria que o selo se chamasse Tupi. Mas já haviam registrado. Tudo bem, Quitanda tem uma sonoridade bacana também."
Para inaugurar o selo, Bethânia optou por um lançamento duplo: o álbum Brasileirinho, no qual repassa uma coleção de canções que têm como fio condutor a religiosidade, a fé; e Vozes da Purificação, primeiro disco solo de Dona Edith do Prato, 87 anos, figura mitológica do samba do Recôncavo Baiano. Segundo a cantora, ambos os lançamentos sumarizam bem suas intenções para com o Quitanda. "Criei o selo para poder misturar, experimentar com coisas que eu gosto de fazer. Mexer com literatura, música regional, lançar novos compositores..."
Brasileirinho, por sinal, mexe com literatura. Trata-se de um disco de exceção, que Bethânia considera como "um projeto especial e não um trabalho de carreira." Participações marcantes no disco são a atriz Denise Stoklos e o poeta Ferreira Gullar, ambos declamando textos de Mario de Andrade. Outros trechos de Vinicius de Morais e Guimarães Rosa se entremeiam pelas faixas. Gravado com bases minimalistas (só Bethânia e um trio de instrumentistas, formado pelo violonista Jaime Alem, o baixista Jorge Helder e o percussionista Marcelo Costa), o álbum esbanja nas participações especiais. "Tem Miúcha (em Cabocla Jurema) e Nana Caymmi (em Sussuarana), dois luxos a que eu me permiti, cantoras que tem uma noção muito sofisticada de música. Ferreira (Gullar) não poderia estar longe, o disco é a cara dele", enumera Bethânia. Além dos citados, os grupos Tira Poeira e Uakti também estão presentes.
A cantora diz ter buscado em sua memória afetiva o repertório do álbum. "Quis relembrar das cantigas, dos aboios que eu ouvia anos atrás. Músicas que refletem o jeito como senti e sinto o Brasil", fala. Bethânia reputa a Chico César uma boa dose de inspiração para o álbum. "Pedi a ele uma música nova para o disco. Ele disse que não queria fazer uma canção, e preferia indicar o que eu poderia gravar. Um menino extraordinário", conta a intérprete. Daí saltaram melodias populares, imemoriais, como Ponto de Janaína e Ponta de Macumba; reminscências do agreste (Boiadeiro, de Armando Cavalcante e Klecius Caldas, ou Capitão do Mato, Paulo Cesar Pinheiro/Vicente Barreto) e do folclore das matas (Sussuarana, de Heckel Tavares e Luiz Peixoto). Não poderia faltar o mano Caetano (São João Xangô Menino, Purificar o Subaé). E há uma inédita: Yaya Massemba, de Roberto Mendes e Capinam. "Gravei essa para entrar num disco de Roberto. Mas ficou tão bom que pusemos nesse também. A letra é uma maneira linda de contar a chegada do negro no Brasil."
Mas a própria Bethânia prefere posar de coadjuvante e empurrar Dona Edith do Prato para os holofotes. "O assunto aqui é o disco dela, o Brasileirinho nem era para ser tão longo, era para ter só umas cinco faixas, um bônus", diz a baiana. Revelada por Caetano Veloso, que a pôs para tocar no hoje mítico Araçá Azul, (1972) Dona Edith criou sua peculiar técnica de percussão ainda criança. "Eu brincava de casinha e arrastava uma faca dentro de uma cuia de queijo. Depois, passei a tocar com um prato de louça. Era tudo brincadeira", narra a anciã. De qualquer forma, o som único da faca arrastada no prato se incorporou ao idioma musical do Recôncavo. "Eu já nasci ouvindo Dona Edith", brinca Bethânia.
Vozes da Purificação resgata o padrão de "pergunta-e-resposta" do samba interiorano da Bahia, expresso à perfeição em números como Marinheiro Só, Tombo do Pau e Samba Numerado. Quase todas as faixas são de domínio público, exceto How Beautiful (Moreno Veloso), Raiz (Roberto Mendes/J.Veloso) e Hino de Nossa Senhora da Purificação (Carlos Sepúlveda). Dona Edith foi redescoberta por J.Veloso, sobrinho de Bethânia e produtor do disco. "O disco é fruto do nosso trabalho de pesquisa do samba do Recôncavo. O grupo vocal que acompanha D.Edith, por exemplo, nunca havia feito um show ou gravado; só se apresentava nas igrejas da região", fala o produtor, que iria lançar Vozes... por conta própria, quando a tia ofereceu a guarita do Quitanda. "O disco estava pronto, acabado, um produto perfeito... ih, horrível essa palavra, 'produto'", brinca Bethânia. Dona Edith pondera sobre a estréia tardia: "Pena que o disco chegou muito tarde. Eu nem queria mais gravar, nem tocar. Aliás, quando Caetano me chamou pela primeira vez, há mais de 30 anos, eu já não queria, me sentia velha, cansada... Mas ele me disse que me achava mais nova até do que ele mesmo."
Encerrada a coletiva, houve a entrega do disco de ouro. Bethânia recebeu o CD dourado das mãos de Bibi Ferreira, que a apresentou com a frase "Que bom você ter nascido". E Bethânia, em retribuição, entregou a Kati Almeida Braga e Olivia Hime, donas da Biscoito Fino, o disco de ouro a que a gravadora tinha direito. Ainda este ano sai o segundo trabalho da cantora pela Biscoito: um disco dedicado à obra de Vinicius de Morais, já em fase de conclusão e que chega às lojas ainda em tempo de relembrar os 90 anos de nascimento do poeta.
O Quitanda recebeu este nome por influência da arquiteta Lina Bardi. "Uma frase da Lina sempre me chamou a atenção: ela dizia que 'todo mundo tem que ter sua própria quitanda'; um espaço particular, seu, para fazer suas coisas, longe da profissão, da carreira", afirma Maria Bethânia. Mas o nome não era o que a cantora queria. "Tenho paixão pela cultura indígena brasileira e queria que o selo se chamasse Tupi. Mas já haviam registrado. Tudo bem, Quitanda tem uma sonoridade bacana também."
Para inaugurar o selo, Bethânia optou por um lançamento duplo: o álbum Brasileirinho, no qual repassa uma coleção de canções que têm como fio condutor a religiosidade, a fé; e Vozes da Purificação, primeiro disco solo de Dona Edith do Prato, 87 anos, figura mitológica do samba do Recôncavo Baiano. Segundo a cantora, ambos os lançamentos sumarizam bem suas intenções para com o Quitanda. "Criei o selo para poder misturar, experimentar com coisas que eu gosto de fazer. Mexer com literatura, música regional, lançar novos compositores..."
Brasileirinho, por sinal, mexe com literatura. Trata-se de um disco de exceção, que Bethânia considera como "um projeto especial e não um trabalho de carreira." Participações marcantes no disco são a atriz Denise Stoklos e o poeta Ferreira Gullar, ambos declamando textos de Mario de Andrade. Outros trechos de Vinicius de Morais e Guimarães Rosa se entremeiam pelas faixas. Gravado com bases minimalistas (só Bethânia e um trio de instrumentistas, formado pelo violonista Jaime Alem, o baixista Jorge Helder e o percussionista Marcelo Costa), o álbum esbanja nas participações especiais. "Tem Miúcha (em Cabocla Jurema) e Nana Caymmi (em Sussuarana), dois luxos a que eu me permiti, cantoras que tem uma noção muito sofisticada de música. Ferreira (Gullar) não poderia estar longe, o disco é a cara dele", enumera Bethânia. Além dos citados, os grupos Tira Poeira e Uakti também estão presentes.
A cantora diz ter buscado em sua memória afetiva o repertório do álbum. "Quis relembrar das cantigas, dos aboios que eu ouvia anos atrás. Músicas que refletem o jeito como senti e sinto o Brasil", fala. Bethânia reputa a Chico César uma boa dose de inspiração para o álbum. "Pedi a ele uma música nova para o disco. Ele disse que não queria fazer uma canção, e preferia indicar o que eu poderia gravar. Um menino extraordinário", conta a intérprete. Daí saltaram melodias populares, imemoriais, como Ponto de Janaína e Ponta de Macumba; reminscências do agreste (Boiadeiro, de Armando Cavalcante e Klecius Caldas, ou Capitão do Mato, Paulo Cesar Pinheiro/Vicente Barreto) e do folclore das matas (Sussuarana, de Heckel Tavares e Luiz Peixoto). Não poderia faltar o mano Caetano (São João Xangô Menino, Purificar o Subaé). E há uma inédita: Yaya Massemba, de Roberto Mendes e Capinam. "Gravei essa para entrar num disco de Roberto. Mas ficou tão bom que pusemos nesse também. A letra é uma maneira linda de contar a chegada do negro no Brasil."
Mas a própria Bethânia prefere posar de coadjuvante e empurrar Dona Edith do Prato para os holofotes. "O assunto aqui é o disco dela, o Brasileirinho nem era para ser tão longo, era para ter só umas cinco faixas, um bônus", diz a baiana. Revelada por Caetano Veloso, que a pôs para tocar no hoje mítico Araçá Azul, (1972) Dona Edith criou sua peculiar técnica de percussão ainda criança. "Eu brincava de casinha e arrastava uma faca dentro de uma cuia de queijo. Depois, passei a tocar com um prato de louça. Era tudo brincadeira", narra a anciã. De qualquer forma, o som único da faca arrastada no prato se incorporou ao idioma musical do Recôncavo. "Eu já nasci ouvindo Dona Edith", brinca Bethânia.
Vozes da Purificação resgata o padrão de "pergunta-e-resposta" do samba interiorano da Bahia, expresso à perfeição em números como Marinheiro Só, Tombo do Pau e Samba Numerado. Quase todas as faixas são de domínio público, exceto How Beautiful (Moreno Veloso), Raiz (Roberto Mendes/J.Veloso) e Hino de Nossa Senhora da Purificação (Carlos Sepúlveda). Dona Edith foi redescoberta por J.Veloso, sobrinho de Bethânia e produtor do disco. "O disco é fruto do nosso trabalho de pesquisa do samba do Recôncavo. O grupo vocal que acompanha D.Edith, por exemplo, nunca havia feito um show ou gravado; só se apresentava nas igrejas da região", fala o produtor, que iria lançar Vozes... por conta própria, quando a tia ofereceu a guarita do Quitanda. "O disco estava pronto, acabado, um produto perfeito... ih, horrível essa palavra, 'produto'", brinca Bethânia. Dona Edith pondera sobre a estréia tardia: "Pena que o disco chegou muito tarde. Eu nem queria mais gravar, nem tocar. Aliás, quando Caetano me chamou pela primeira vez, há mais de 30 anos, eu já não queria, me sentia velha, cansada... Mas ele me disse que me achava mais nova até do que ele mesmo."
Encerrada a coletiva, houve a entrega do disco de ouro. Bethânia recebeu o CD dourado das mãos de Bibi Ferreira, que a apresentou com a frase "Que bom você ter nascido". E Bethânia, em retribuição, entregou a Kati Almeida Braga e Olivia Hime, donas da Biscoito Fino, o disco de ouro a que a gravadora tinha direito. Ainda este ano sai o segundo trabalho da cantora pela Biscoito: um disco dedicado à obra de Vinicius de Morais, já em fase de conclusão e que chega às lojas ainda em tempo de relembrar os 90 anos de nascimento do poeta.