Memórias de um compositor sem papas na língua

Paulo Vanzolini lembra suas histórias com Adoniran Barbosa e João Gilberto, conta como costuma escrever suas músicas e diz o que gostaria de ouvir quando chegar ao Céu

Carlos Calado
16/01/2001
CliqueMusic - Como era sua relação com Adoniran Barbosa?
Paulo Vanzolini
- O Adoniran era muito meu amigo. Quando trabalhei com ele na TV Record, saíamos sempre juntos para tomar uma cachaça. Ele propôs várias vezes fazer parceria comigo, mas não daria certo, porque ele queria que eu fizesse a melodia (risos). Considero o Adoniran um caricaturista genial com um grande poder de síntese. Ele tinha um samba que dizia: "Inês saiu, dizendo que ia comprar pavio pro lampião". Você pode escrever sete volumes sobre a periferia paulista, mas dificilmente vai ser tão preciso quanto essa imagem. Onde mais alguém usaria um lampião em São Paulo?

CliqueMusic - Qual é a sua memória mais longínqua em termos de música? Como se envolveu com ela?
Paulo Vanzolini -
Ouvindo rádio. Pode parecer que eu estou me gabando, mas me lembro perfeitamente de ligar o rádio aos cinco ou seis anos de idade para ouvir Noel Rosa e Aracy de Almeida. É lógico que a minha inspiração vinha dessas melodias que eu ouvia quando criança. Uma vez fiz uma música que o Paraná logo reconheceu. Era Manolita, uma música antiga famosíssima, que ficou na minha cabeça e eu não percebi. Isso também aconteceu com o Caetano Veloso: metade da melodia de Sampa ele tirou de Ronda...

CliqueMusic - Então o senhor acha que ele não fez uma citação, uma espécie de homenagem ao samba paulista?
Paulo Vanzolini -
E baiano faz homenagem a alguém? (risos) No começo, provavelmente, ele não percebeu. Mas depois resolveu não tirar a melodia de Ronda, porque sabia que eu não ia dizer nada. Não gosto muito dele, mas ele precisava ganhar a vida de algum jeito. Aliás, desses músicos baianos eu não gosto de nenhum.

CliqueMusic - Nem de João Gilberto?
Paulo Vanzolini -
Como músico não, porque ele é muito fresco, mas como pessoa eu gosto demais. Conheci o João Gilberto por intermédio do Henrique Lobo, um disc-jóquei que era meu primo e muito amigo dele. Uma vez, fui visitar o João em Nova York. Chegando lá, no chão da casa dele, tinha vários violões Ovation que a fábrica tinha mandado para ele experimentar. Fiquei lá das 10h30 da noite às 6h das manhã. Aí ele disse para mim: "Paulinho, eu sempre toquei esse acorde deste jeito, mas agora descobri que não era assim. Veja como é o certo..."

CliqueMusic - E o senhor entendeu?
Paulo Vanzolini -
Falar em acorde, para mim, é como latir para cavalo (risos). Fiquei olhando ele tocar, pacientemente, sem entender nada. Quando voltei a São Paulo, a turma toda perguntava: "Você não lembra qual era o acorde?" Naquela época todo mundo era apaixonado pelas frescuras do João, mas o que eu podia fazer se não entendo nada disso?

CliqueMusic - O sr. tem idéia do número de canções que compôs?
Paulo Vanzolini
- Por volta de 60. Eu fazia música para o meu prazer. Como não tinha interesse comercial, podia me dar ao luxo de ser perfeccionista, de ficar seis meses na dúvida, pensando se ia fazer de um jeito ou de outro, como fiz em Volta por Cima. Além disso, entro meio desonestamente nessa competição porque tenho uma bagagem grande, estudei muita poesia.

CliqueMusic - Como é seu método de composição?
Paulo Vanzolini -
No começo é um flash, um pedaço de letra e um pedaço de melodia que vêm juntos. Depois, dá um trabalho desgraçado. É 10% de inspiração e 90% de transpiração. Como eu não sei ler música, guardava a coisa na cabeça mesmo até encontrar um violonista amigo, como o Luís Carlos Paraná ou o Adauto Santos, que logo saíam fazendo o acompanhamento. Minha música não tem inovação musical nenhuma. É aquele batidão que um violonista que conhece a tradição musical paulista acompanha na primeira vez.

CliqueMusic - É verdade que, em geral, o senhor não gosta das gravações de suas músicas?
Paulo Vanzolini
- Acho muito ruins. O drama não é o cantor, mas o arranjador. Em geral, o sujeito não entende a minha cabeça. Talvez eu seja culto demais para os arranjadores daqui. Um dia me telefonou um sujeito, dizendo que era procurador do Roberto Carlos e que ele estava pensando em gravar algumas músicas minhas. Eu disse que permitiria, porque gosto muito do Roberto, mas não deu em nada. Aí é que ia ser um desastre mesmo (risos). Gosto dele, mas uma canção minha cantada por Roberto Carlos seria, musicalmente, um suicídio.

CliqueMusic - O que o senhor acha da nova geração de sambistas?
Paulo Vanzolini
- Gosto do Zeca Pagodinho, que é simples, criativo e desataviado. Acho ele muito bom e quando posso escuto com muito prazer. Agora esse pessoal que fica batucando, com as mulheres mexendo as bundas, não dá...

CliqueMusic - Como o senhor explica sua atração pela Zoologia?
Paulo Vanzolini
- O porquê eu não sei, mas posso contar o que aconteceu. Eu era muito rebelde, não gostava de escola. Meu pai, que era um engenheiro quadrado, ficou com medo de que eu fosse reprovado na admissão ao ginásio. Então me prometeu uma bicicleta, se eu entrasse bem. O primeiro passeio que eu fiz com essa bicicleta, aos 10 anos de idade, foi ao Instituto Butantã. Nesse dia, minha vida se resolveu. Daí em diante, todo dia eu pegava a bicicleta e ia para o Butantã. A Zoologia no Brasil é muito atrasada, mas quando você chega num certo nível de teoria na pesquisa, torna-se muito gratificante. É uma profissão muito bonita.

CliqueMusic - Como o senhor gostaria de ser lembrado na posteridade: como compositor ou cientista?
Paulo Vanzolini
- Eu não faço a menor questão de ser lembrado (risos). Costumo assistir na TV a cabo àquele programa do Actor’s Studio. Ao entrevistar os atores, no final do programa, o apresentador costuma perguntar a eles: "Se é que o Céu existe, o que você gostaria que Deus dissesse quando você chegar lá?" Sabe do que eu gostaria? Que Deus dissesse simplesmente: "Oi, Paulo".

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