Moacyr Luz acerta as contas com os bambas

Compositor carioca revê os passos que o levaram ao CD Na Galeria, seu primeiro disco só como intérprete

Dirley Fernandes
19/09/2001
O carioca Moacyr Luz, protegido de São Jorge, está se convencendo aos poucos que nasceu virado para a lua. Se não, o que mais poderia explicar os encontros que têm levado sua vida e sua arte cada vez mais para o bom caminho? Tudo começou aos 15 anos. Dois dias depois da morte do pai, sem ter o que fazer, o garoto de Bangu acompanhou o primo a uma aula de violão no Méier. Conheceu o guitarrista Hélio Delmiro, um dos maiores instrumentistas do mundo. Tornou-se seu cambono e com ele se iniciou nos segredos do violão. Alguns anos depois, já compositor estabelecido, mas ainda distante do reconhecimento, foi fazer um show num modesto bar da Tijuca, zona norte do Rio. Esbarrou com Aldir Blanc. Conversa vai, conversa vem, descobriu-se vizinho do genial exegeta da alma carioca. Ficaram parceiros. Agora, resolveu, enquanto preparava um disco de composições inéditas, fazer um registro como intérprete de algumas músicas antigas que admirava ou tocava entre amigos. Deu-se que logo ele - cantor de não tão variados recursos -, acabou reencontrando uma tradição: a da elegância do samba, que vinha sendo deixada de lado nos lançamentos mais recentes do gênero. A atenção que o álbum Na Galeria (que chega às lojas essa semana, via Lua Discos) tem despertado é tanta que leva Moacyr a achar que está “diante de um novo começo”.

“Agora, eu acho que as pessoas estão prestando atenção ao que eu faço”, diz. “Eu não componho as músicas só para mostrar aqui para você, né?”, diz ele, enquanto abre a primeira cerveja na sua sala/botequim (com cristaleira recheada de cachaças mineiras, guardanapos personalizados e a permanente vigilância de São Jorge), depois de mostrar uma parceria inédita com Martinho da Vila. E segue contando, com sincera modéstia, porquê acredita nisso: “Entrei num site de busca; tinha mais de mil referências a mim. Em Fortaleza, um grupo que estava tocando num bar registrou no microfone a minha presença. Fiquei pensando: ‘Que gentil! Não devem nem me conhecer’. E depois eles saíram tocando Medalha de São Jorge, Saudades da Guanabara 30'' excerpts, Mico Preto 30'' excerpts, Chupa-cabra Com Catchup 30'' excerpts...” Apesar de receber na hora a gozação do companheiro Jards Macalé, Moacyr ficou tão feliz que estendeu mais dois dias sua permanência na cidade. “Também, com quatro lagostas a dez reais, o que eu viria fazer na Muda?”, desconversa.

Quando conta passagens como essa, Moacyr não disfarça a emoção. Em verdade, nem tenta. As lembranças que o carioca de 43 anos desfia o deixam à beira das lágrimas a cada dois minutos. Na hora de cantar, essa emotividade extrapola: “Eu nem gosto de falar disso, mas sou muito passional. Tenho que berrar mesmo em determinados momentos. Alguns versos já canto pedindo salvação. Incorporo. Aí, tenho que chamar a ajuda de São Jorge.”. Em Na Galeria, Moacyr, em nome da elegância, segurou essa tendência esparramada. “Agora, estou recebendo minha incumbência com um pouco mais de disciplina”. Na prática, ele baixou os tons, desacelerou os andamentos e economizou no instrumental. Com isso, deixou tempo para se saborear as melodias de Cartola, Herivelto Martins, Sinhô, Pixinguinha e outros mestres e criou espaço para se apreciar o delicado e complexo trançado formado pelos violões dele e de Carlinhos Sete Cordas. As percussões de Beto Cazes interferem com sutileza e precisão. E é tudo. “Olha, tem esse acorde aqui”, diz Moacyr, tirando do violão um som cheio de nonas e quintas. “Eu aprendi quando tinha uns quinze anos e estava guardando até hoje. Nesse disco eu pude usar”, explica ele. “O compositor tinha deixado o violonista meio para trás”.

Mas vamos aos encontros que trouxeram Moacyr, depois de mais de 100 músicas gravadas e três discos individuais, à serena elegância e caudalosa musicalidade de Na Galeria. O primeiro foi com o subúrbio carioca. Em Bangu, na Zona Oeste, onde o capacho de sua casa era feito com chapinhas viradas para limpar a terra trazida das ruas, ele descobriu as tendinhas com paçoca e barril de jurubeba, a farofa de tanajura, o piso de vermelhão e as devoções. “O subúrbio ainda acredita em Papai Noel. E eu, que sou filho do Carequinha, trago esse subúrbio dentro de mim. Eu não gostava muito de falar isso. Foi o Aldir que me despertou de que essa era a minha cara”. Ele se confessa impressionado com o que viu no último dia 23 de abril, na festa de (olha ele aí de novo) São Jorge, em Quintino. “Malandro, malandro mesmo, vestido de São Jorge para pagar promessa feita pela mãe. E cachaça e mocotó sendo vendido no pátio da Igreja para aquele povo todo de vermelho e branco para homenagear o Santo. Já imaginou alguém no Leblon vestido de São Jorge?”.

Depois, quando ele era apenas um órfão com jeito sonhador de artista, aconteceu o encontro com Hélio Delmiro. Moacyr nunca tinha pensado em tocar violão, mas acompanhou um primo numa aula com Carlos, irmão do guitarrista, e acabou adotado. Moleque de 15 anos, passou a carregar os violões e guitarras do Mestre para gravações com Elis Regina, ensaios com Elizeth Cardoso, apresentações com Vitor Assis Brasil, encontros com Sarah Vaughn... sem contar o convívio com um compadre de Hélio que se tornaria companheiro da vida toda também para ele, um tal de Guinga: “E eu nem percebendo direito como estava rodeado de gente talentosa. Quinze anos naquele tempo era outra coisa. A gente batia punheta com Du Loren!”, ressalta.

Pouco tempo depois, a mãe de Moacyr mudou-se para o Nordeste. O garoto teria que ir junto, mas Hélio via seus progressos no violão e o início de suas aventuras pela composição, e sabia que ele levava jeito. Conversou com a família e acabou acolhendo o moleque em seu apartamento. Mais tarde, ele retribuiria, hospedando o amigo depois de uma crise no casamento. Entre idas e vindas, o músico consagrado e o compositor iniciante moraram juntos por cinco anos.



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