Moreno Veloso dá a partida na sua máquina musical

Com o disco de estréia de seu trio, em que canta, toca violão e assina canções, o músico espera ter trazido a resposta para uma recorrente pergunta: "O que faz musicalmente o filho de Caetano?"

Silvio Essinger
12/10/2000
"Muita gente que faz seu primeiro disco quer se lançar, entrar no mundo da música", reconhece Moreno Veloso. Seu caso, porém, foi bem diferente: "Eu já estava envolvido com ela mesmo que não quisesse." Ainda criança, o filho de Caetano Veloso fez a letra para Um Canto de Afoxé para o Bloco do Ilê, música do pai, gravada no disco Cores, Nomes, de 1982. Ele cresceu, passou no vestibular para Física, e manteve um relacionamento periférico com a música, atuando discretamente em bandas de amigos, como o Goodnight Varsóvia. No entanto, era sempre assediado por pessoas que queriam saber se ele iria ou não seguir os passos do pai. "Já recebi uns 920 telefonemas de jornalistas. Sempre dizia: ‘Eu não sou nada, ainda não fiz nada...’", conta ele. Mas esse tempo passou: hoje Moreno tem para mostrar o disco Máquina de Escrever Música, que gravou com os amigos Domenico Lancelotti (percussões) e Kassin (baixo, demais instrumentos e produção) sob a alcunha de Moreno + 2. É, segundo ele, a resposta para a velha pergunta "O que Moreno anda fazendo musicalmente?". O CD sai nos próximos dias pela Rock It! (selo de Dado Villa-Lobos, guitarrista da Legião Urbana), a tempo de pegar os shows que o trio faz no Free Jazz Festival, nos dias 20 (Rio) e 21 (São Paulo).

Ao adentrar o mercado com um disco que reúne composições suas e algumas releituras, gravadas com sua voz, seu violão e (eventualmente) seu cello, Moreno concorre para tornar-se a celebridade que não queria ser, com todos os efeitos colaterais. "Esse talvez seja o fardo da história", suspira. "Até então era divertido mostrar o trabalho e tocar. Mas graças a Deus a felicidade de o disco ter saído é maior [que a angústia]." Não fosse um convite do produtor Carlos Barmack (que tinha ouvido uma interpretação sua do Bhagavad Gita traduzido por Rogério Duarte) para montar um show, Moreno certamente não teria feito Máquina de Escrever Música. Para acompanhá-lo, ele convidou os amigos de colégio Kassin (do Acabou La Tequila) e Domenico (do Mulheres Q Dizem Sim). Deu-se a alquimia. De repente, além de um show, eles tinham um disco, que começou a ser gravado um ano e meio atrás, num estúdio no apartamento de Kassin. "Apareceu um eu que eu nunca tinha visto", conta Moreno, cuja obra até então estava espalhada. No disco Livro, de 1997, seu pai havia gravado How Beautiful Could a Being Be. Pouco depois, retomada a parceria com Caetano (17 anos depois de Um Canto de Afoxé), eles fizeram Sertão, que acabou sendo gravada pela madrinha Gal Costa (e que foi regravada para o CD).

O título do disco vem da história de quando Tom Jobim tentou passar pela alfândega com um computador, dizendo que era uma "máquina de escrever". "Está muito grande para ser isso, não é?", perguntou o agente. "É uma máquina de escrever música", devolveu, espirituoso como sempre, o maestro. O fato é que o CD do Moreno + 2 (cuja capa mostra um transístor estilizado) foi todo feito em computadores, com tecnologia até certo ponto precária. Um dos guias nesse trajeto pelos chips foi Daniel Jobim, neto de Tom, que participa do disco tocando piano na faixa de abertura (Sertão) e na de encerramento (I’m Wishing). "O disco é uma teia de amizades que norteia o resultado em si", diz Moreno, que confessa não ser nem possuidor de uma memória musical fabulosa e nem um faminto por novidades ou antiguidades fonográficas. "Meu pai é que tem uma memória musical. Ele e João Gilberto. Se eles tiverem ouvido uma música uma vez, aos quatro anos de idade, são capazes de lembrar 45 anos depois e sair tocando", conta, completando: "E o Kassin é que é o colecionador de discos. Por acaso estou ali no meio dessas pessoas. Meus amigos me mostram umas coisas, meu pai lembra de outras."

Para se prestar atenção nas letras
Máquina de Escrever Música foi gravado ao longo de três meses num estúdio montado pela banda em Araras (região serrana fluminense) e finalizado em estúdios no Rio e em Nova Iorque. "E não é um disco pop", avisa Moreno. "Uns chamam de salada, mas tem o problema de o termo ter ficado pejorativo. Ele é uma mistura de tudo o que me diz respeito musicalmente." Basicamente acústico, o CD faz brilhar a voz de Moreno. "Não sei se canto legal", despista. "A minha preocupação é a do recado." Ele explica: "Todas as músicas que estão no disco têm um sentido para estarem nele. Quero que as pessoas entendam as letras." Por isso mesmo, Moreno fez uma versão do rock Eu Sou Melhor Que Você (dos Mulheres Q Dizem Sim) só com voz e violão. "Foi de propósito, para que as pessoas prestassem atenção", diz.

Quanto às comparações que vão aparecer entre sua voz e a do pai, ele se antecipa: "Meu pai me ensinou a cantar. Mas tirando algumas passagens vocais, acho que o gene não falou tão alto." No disco, Moreno gravou o samba Só Vendo Que Beleza, de Henricão e Rubens Campos (imortalizado por Carmen Costa), que vem a ser a primeira música que Caetano o ensinou a cantar. "Descobri poucos meses atrás que o único samba que eu gravei no disco era paulista. Pensei que pudesse ser da Bahia ou do Rio", comemora. Detalhe importante: Moreno dedica o disco ao pai e aos amigos Lucas Santtana e Pedro Sá (guitarrista do Mulheres, para quem escreveu Para Xó, bolero com letra em castelhano, tocado pelo percussionista Marcos Suzano em tablas indianas ao invés de bongôs).

Moreno conta que, uma vez pronto o disco, mandou-o para tudo quanto é gravadora, pequena, média e grande. Para todas, ele sempre apresentava um ou outro probleminha – que até seriam solúveis. "Mas eu queria que o disco ficasse daquele jeito, que é meu, do Kassin e do Domênico", conta. O selo Natasha (de Paula Lavigne, atual mulher de Caetano) não chegou a fazer objeções à Máquina, mas o rapaz preferiu não aceitar o convite "para não ficar tanto na família". "A Paulinha é um gênio de marketing e gerenciamento", elogia. "Acredito em tudo de que ela participa. Mas ela é parente." A pequena e segmentada Rock It! apereceu, segundo Moreno, como a opção ideal. "O presidente [ou seja, Dado] tinha emprestado uma mala de microfones mesmo antes de a gente assinar o contrato", conta. No entanto, foi a Natasha que ficou com os direitos de licenciamento de Máquina de Escrever Música para a Europa, os Estados Unidos (pelo selo Ryko) e o Japão – o lançamento será feito em janeiro próximo. Shows do Moreno + 2 nessas paragens devem acontecer na mesma época.

O maior temor de Moreno em relação à receptividade do disco pela imprensa não é exatamente por ele, mas por Caetano "Meu pai é uma figura que tem alta impedância na mídia. Fico preocupado com os ataques que vão ser feitos a ele através de mim", diz, emendando: "Mas ele é mestre [em responder aos ataques]." O rapaz tem certeza de que ainda fará mais discos: "Muitas músicas planejadas não entraram no CD, outras surgiram durante a gravação. O disco já pede um segundo só para ter onde botar as músicas." Os próximos serão o do Domenico + 2 (que já está pronto e é bem mais experimental que o Máquina), o do Kassin + 2 e, quem sabe, o do + 3 ("O impessoal, só com os anarquismos", diverte-se).

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