Morre Moreira da Silva, o Rei do Samba de Breque

Após vários dias de internação, cantor de 98 anos de idade não resiste à falência generalizada dos órgãos. Ases da MPB prestam tributo ao mestre em show no Canecão (RJ).

Rodrigo Faour
06/06/2000
"Estou com hábeas corpus preventivo/ Até o ano 2000, escovando urubu/ Treinando a nomenclatura/ Queimando óleo 60 na Zona do Agrião/ E não tem Fit nem Nick/ Because I’m weak, but I’m not sick/ Do you understand?"

Num disco do ex-jovem guardista Cyro Aguiar, de 1976, Moreira da Silva já previa que não morreria antes do ano 2000 – de fato, segurou as pontas até hoje de manhã, às 9h25, quando sucumbiu à falência generalizada dos órgãos, no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, onde estava internado desde o último dia 15. Ele será cremado amanhã no Crematório do Cemitério do Caju, às 14h30. Moreira viveu muito bem durante 98 anos, com uma saúde de ferro, e na ativa como cantor – tanto que sua última gravação tem menos de dois anos. Foi em fins de 98, quando participou de duas faixas – Amigo Urso e Resposta ao Amigo Urso – no CD Brasil São Outros 500, cantando em duo com Gabriel o Pensador. Moreira da Silva, quem diria, morreu. Sim, porque a essas alturas muita gente já pensava que o malandro era, de fato, imortal. "Mas malandro que é malandro não morre, tira férias" – deve estar dizendo o Morengueira lá do além.

Moreira da Silva ficou internado no Hospital (particular) Pan-Americano, entre os dias 19 de abril e 15 de maio, tendo somente depois desta data transferido para o Hospital estadual dos Servidores, a família do cantor está com uma dívida de R$ 50 mil que não tem condições de pagar. Por causa disso, haverá um show beneficente no Canecão (RJ), no próximo dia 14, quarta-feira, às 21 horas, com a participação de grandes nomes da MPB. Dirigido por Ricardo Cravo Albin, o show reunirá naqule palco Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Sandra de Sá, Elza Soares, Carmem Costa, Emilinha Borba, Jards Macalé e Bily Blanco.

A vida de Antonio Moreira da Silva se confunde com a da população carente carioca do início do século. Era um moleque que atendia pelo nome de Mulatinho. Viveu nos primeiros morros cariocas, onde passou fome e aprendeu com os malandros de antigamente a andar impecavelmente bem-vestido. Já adolescente, garfou várias mulheres do Mangue (e sofreu com as doenças venéreas de então) e conheceu as manhas dos jogos de carta e bilhar vendo os malandros da época enganando os otários. Moreira presenciou ainda a Revolução de 30, porque era motorista do secretário do prefeito Prado Junior, isto após ser motorista de táxi, e antes de ser o Mulatinho da Assistência Municipal, à frente do volante de uma ambulância.



De repente, se viu agradando nas rodas de samba em fins dos anos 20 e já em 1931 gravava uns pontos de macumba, até se encontrar junto ao ambiente do samba, sagrando-se vencedor do Carnaval de 33 (É Batucada), e depois, alegrou o tríduo momesco de 34 com Agora é Cinza e Implorar (em 35). Foi ainda nos anos 30 que ele gravou o samba que mudaria sua vida, Jogo Proibido, no qual pela primeira vez fez os breques que o tornariam famoso.

O terror da bandidagem
A década de 40 foi de vacas magras para sua carreira musical, mas foi quando em 1952, a partir do sucesso de Na subida do Morro (Moreira/ Ribeiro da Cunha) e Olha o Padilha (Bruno Gomes, Fereira Gomes e Moreira), sobre o delegado que era o terror dos malandros e prostitutas, Moreira, voltou às paradas, engatando com Acertei no Milhar (Wilson Batista e Geraldo Pereira). Nos anos 60, Moreira notabilizou-se por conta do super-herói fictício que encarnou, o Kid Morengueira, sempre resistindo a bandidos da pesada, em sambas de breque, como O Rei do Gatilho e O Último dos Moicanos, feitos para ele sob encomenda pelo sambista-cronista Miguel Gustavo.

Fora o lado do cantor, Moreira ficou famoso por seu temperamento irreverente, com resposta para tudo na ponta da língua, sempre com tiradas engraçadas. Nos últimos 20 anos de vida, era sempre lembrado no dia de seu aniversário, dia 1º de abril, quando desfilava pela Rua da Carioca em carro aberto. Apesar de vestir-se de terno branco e chapéu panamá, encarnando o estereótipo do malandro, ao mesmo tempo, recusava ser chamado como tal. "Eu não sou malandro. Sou um trabalhador que já sofreu com alguns espertos, que levantaram uma grana em cima de mim", declarou certa vez. Morengueira, que também adorava contar vantagens sobre mulheres ("Só virgens tive mais de dez. De graça. Um homem tem que saber tratar a mulher. Eu nunca falhei"). Moreira também gostava de corrigir erros de português dos outros. "O idioma português é muito maltratado. As pessoas falam em queixo. Quem tem queixo é jumento. Gente tem mento", ensinava.

Moreira deixou uma obra de dezenas de discos de 78 rotações e cerca de 20 LPs. Seu último CD data de 1995, Três Malandros In Concert, ao lado Dicró e Bezerra da Silva, uma sátira aos disco dos Três Tenores In Concert, de Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti. Quando fez 97 anos, mostrou um de seus últimos sambas, em parceria com Reginaldo Bessa, que dizia: "Abordei uma gatinha/ Cheio de empolgação/ Ela não entrou na minha/ Fiquei com a cara no chão/ Disse que tomei Viagra/ E ela respondeu: ‘Sacana! Viagra não tá com nada/ Meu negócio é Viagrana’".