MV Bill, direto da trincheira na Cidade de Deus

O rapper estréia em uma grande gravadora com um álbum rico (musicalmente) e agressivo (nas mensagens)

Marco Antonio Barbosa
22/09/2002
A barra-pesada de se viver na Cidade de Deus não cabe apenas num longa-metragem - por maior que tenha sido o impacto de Cidade de Deus, o filme. Assim pensa o rapper MV Bill, o mais famoso morador da comunidade carioca, que acaba de lançar seu segundo álbum (Declaração de Guerra ouvir 30s), ainda sob o impacto na mídia do filme baseado no livro de Paulo Lins. Para além de qualquer debate entre a validade (estética e sociológica) da fita, o novo álbum de Bill - o primeiro por uma gravadora multinacional, a BMG Brasil - sedimenta a carreira de um dos mais importantes artistas hip hop brasileiros. Um grande passo para sedimentar a polarização entre Rio e SP (via Racionais MC's) na linha de frente do rap nacional; sempre com a preocupação de fazer a crônica mais dura da vida na periferia.

"Gostei muito do que ficou no disco. A pesquisa de sons brasileiros que está presente neste CD tinha que ser pelo menos iniciada. Eu não ia ficar esperando um produtor de rap americano vir para cá e descobrir sons brasileiros para fazer rap", afirma Bill sobre o resultado final de Declaração de Guerra. Em comparação com seu trabalho anterior, o som do rapper incorporou uma série de novas influências, que na verdade apenas remetem o ouvinte à tradição da música brasileira. De preferência, a música negra brasileira. "Baseei o disco na própria identidade musical brasileira. Nossa música é rica demais para que os rappers do Brasil afora fiquem sampleando James Brown, Isaac Hayes e demais nomes do funk americano", acredita Bill.

"Sou um colecionador de rap do mundo todo, tenho coisas de rap russo, asiático, alemão e francês, e percebi que todos eles fazem rap com própria identidade, com elementos da própria cultura", prossegue o rapper. Isso se traduz de maneiras claras, como nas citações sampleadas a nomes como Hyldon, Tim Maia, Djavan e Bebeto, ou nos atabaques afro-brasileiros que pontuam o álbum aqui e ali. Uma concessão à vertente mais dançante do hip-hop está na balançada e irônica Emiví (que, segundo seu autor, "é pra tocar no rádio e nos bailes"). Até mesmo o rock que entra na mistura tem sotaque local; Chorão, do Charlie Brown Jr., é o convidado de Cidadão Comum Refém. A ambição atinge seu ponto máximo nas cordas clássicas registradas para Só Deus Pode me Julgar. Por trás da alquimia sonora, figuras como Zé Gonzales e Ganjaman, dividindo os créditos de produção com Bill.

Entretanto, a música - por mais bem cuidada que esteja - é sempre pano de fundo para a "mensagem da verdade" do mensageiro Bill. Declaração de Guerra comprova isso já em sua primeira faixa, Soldado Morto, resposta à faixa Soldado do Morro, que tanta polêmica causou com seu clipe, há dois anos - o rapper ainda responde na Justiça pelas imagens fortes do vídeo, que supostamente fariam apologia ao tráfico de drogas. "É uma guerra sim, e do meu lado, do lado da favela, posso dizer que estamos perdendo", dispara MV Bill. As fortes imagens criadas nas letras do rapper podem assustar, sim. E ele sabe disso. "Ficar narrando o cotidiano do banditismo nunca é bom, acaba diminuindo a esperança de quem ouve. Mas é importante tratar disso a sério, sem banalizar", diz.

Mais contundente do que nunca, desde o título do álbum, Bill não foge do enfrentamento. "O que eu produzo quase sempre causa medo. É como eu mesmo canto, 'sou o pesadelo das elites', mas também falo contra o tráfico. É importante mostrar também que a grande força por trás disso tudo não está dentro da favela. E que os jovens que trabalham no tráfico são apenas soldados nessa guerra. Viver na Cidade de Deus, ou em qualquer favela, é conviver, mesmo forçado, com o tráfico e com a violência. É o que eu canto", fala o rapper. Ainda assim, ele faz questão de buscar a positividade. "Posso estar mais agressivo sim, mas minha batalha não é pela exclusão, é pela inclusão."

Coincidência ou não, MV Bill lançou seu álbum quase ao mesmo tempo em que chegava aos cinemas Cidade de Deus. O filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, reverenciado como marco histórico por seu tratamento hiperrealista do cotidiano da comunidade, foi visto com reservas pelo rapper. "O que eu fiquei pensando depois de assistir foi o seguinte: na minha ignorância cinematográfica, o filme é bom, muito bem feito. Vai ganhar muitos prêmios e muito dinheiro. Mas o único prêmio que a comunidade da CDD vai ganhar é o de lugar violento", acredita Bill. Não que o artista tenha desgostado da fita. Ele só questiona os efeitos que o filme terá sobre os moradores do lugar. "Quem mora lá, como eu, sabe a dificuldade que se passa para chegar a socialização. O que o filme fez foi colocar um rótulo de lugar violento, reforçando preconceitos." Alex Pereira Barbosa, o Mensageiro da Verdade Bill, deve saber do que está falando.