MV Bill e a polêmica com <i>Cidade de Deus</i>

Rapper carioca publica texto na Internet contra a imagem que o consagrado filme faz da favela onde ele foi criado

CliqueMusic
22/01/2003
O rapper MV Bill encontra-se mais uma vez no centro de uma polêmica sobre o filme Cidade de Deus. Ontem (dia 21) o artista publicou, no website da ONG Viva Favela (www.vivafavela.org.br) um texto criticando a visão pessmista que o filme, dirigido por Katia Lund e Fernando Meirelles, constrói da comunidade carente da Cidade de Deus (onde o rapper foi criado e mora até hoje). Na época do lançamento do filme, como membro ilustre da comunidade da CDD, MV Bill foi consultado pela imprensa sobre as imagens violentas e agressivas vistas no filme - e preferiu se manifestar evasivamente, dizendo que "o filme pode ganhar o Oscar, mas a Cidade de Deus só vai ganhar o Oscar da violência" e afirmando que a fita só mostra o lado negativo da favela. No texto publicado ontem, o tom do rapper é bem mais direto.

Segundo o antropólogo Hermano Vianna (citado no texto de Bill, envolvido na pesquisa para Cidade de Deus e atuante em diversos movimentos sociais nas comunidades carentes cariocas), a opinião do rapper reflete o pensamento de boa parte da população da CDD. Em comunicado distribuído à imprensa hoje, Hermano conta: "Fiquei imediatamente muito preocupado com o que li. Tinha certeza que ninguém - nem a comunidade da Cidade de Deus, nem os produtores do filme, nem o MV Bill, nem a cultura brasileira - nada tinha a ganhar com a situação que o texto anunciava." Leia a íntegra da coluna de MV Bill:

"A bomba vai explodir?
MV Bill

Esse texto será curto e grosso !!!
Dei ao Paulo Lins, Katia Lund, Vídeo Filmes, O2, Globo Filmes e todos os seus aliados a chance de reverter e repensar uma postura social em relação à comunidade da Cidade de Deus. Todo mundo sabe do que estou falando. Eu nunca fiz críticas abertas ao filme. Apenas disse, e digo, que o Cidade de Deus ganharia o Oscar e que a nossa Favela ganharia o Oscar da violência.
Pois é, ninguém se mexeu, continuaram ignorando a capacidade que essas pessoas têm de pensar. Parece que a guerra vai ser inevitável! Acabei de apertar o botão. Agora, é começar a contar... Vou começar com uma entrevista coletiva no dia 06 de fevereiro na própria comunidade. Os interessados podem se inscrever pelo telefone (021) 2450 5125 e falar com Renata ou Carol!
Aviso: vou colocar todo mundo na bola. O mundo inteiro vai saber que esse filme não trouxe nada de bom para a favela, nem benefício social, nem moral, nenhum benefício humano. O mundo vai saber que eles exploraram a imagem das crianças daqui da CDD. O que vemos é que o tamanho do estigma que elas vão ter que carregar pela vida só aumentou, só cresceu com esse filme. Estereotiparam nossa gente e não deram nada em troca para essas pessoas. Pior, estereotiparam como ficção e venderam como verdade.
Fui omisso, sim. Por respeito à Katia Lund e ao Paulo Lins. Pela nossa amizade. Mas penso que com esse comportamento não digno, não estou sendo fiel aos meus princípios, à minha origem, à minha comunidade, e mais que isso, traí a minha própria consciência.
Todos eles sabem que não queremos dinheiro. Queremos apenas respeito. Eles, os donos do Cidade de Deus, têm o apoio da mídia. Mas nós, INFELIZMENTE, temos o apoio do ódio que é a única coisa que nos sobrou. Não queria aparecer, tanto que nem aqui nesse espaço eu falei sobre esse assunto. Por outro lado, quem falaria? Assumo aqui como meu esse papel. Alguém tem que dizer isso a eles. Eu estou dizendo!
A própria "Folha de São Paulo" acaba de produzir uma matéria na comunidade e eu me recusei a falar, novamente por respeito aos amigos, para não incitar a comunidade. Não falei por ter noção da minha responsabilidade. Só que estou cansado. Chegou a hora de botar o cachimbo na boca da cobra, sem me preocupar se ela vai tragar pelo nariz. Sem me preocupar com as consequências para cada um de nós. O certo é o certo, o errado é o errado.
Dia 13 de fevereiro o caô vai tá formado!
Ao tomar conhecimento da minha posição, algumas autoridades começaram a entender o nosso sentimento de abandono e começaram a se mobilizar, mas ainda acho pouco. O prefeito pode fazer 200 obras aqui na Cidade de Deus, o secretário nacional de Segurança pode fazer mais 200. Tomara que façam, já está prometido.
Mas que a humilhação pela qual estamos passando sirva de exemplo para outras comunidades que vivem na miséria. Se algum dia alguém trasformar suas vidas num grande circo peçam uma contrapartida, mesmo que seja um simples palhaço. Pois pelo menos alguma alegria estará garantida.
O Hermano Viana (eu que tinha minhas reservas quanto aos intelectuais vou começar a rever os meus conceitos) - se um terço do que o Celso Athayde falou a respeito desse maluco aí for verdade, a Cidade de Deus terá um débito eterno com ele. Imagino que ele seja contra, e a Cidade de Deus vai saber disso: só para vocês terem uma idéia, esse tal de Hermano aí, ao concordar que merecemos mais respeito, teve a coragem de vir aqui na favela, sábado passado, para discutir com os moradores, à noite, embaixo de chuva (ele deve ser louco!). E mais, teve a coragem até de "bater boca" com os "amigo" (ele é doido!). Depois disso ele descobriu que a comunidade nada mais queria a não ser "carinho".
Dia 06 taí. Mas antes eu quero desenrolar com a favela pra saber o que ela pensa.
Voltando: eu agradeço à sensibilidade do Prefeito, do Secretário e do Hermano. Mas "o filme" tem que se posicionar também. Eles têm a obrigação de sentar nessa nossa mesa, e repensar o significado da palavra "amor" . Aí sim, eu poderei ver a Cidade de Deus feliz para esperar o dia do Oscar chegar e ter algum motivo para comemorar. Pois até aqui, só a polícia se beneficiou dessa desgraça retratada em 35 milímetros!
O2 e Vídeo Filmes: "Deus existe e só ele pode ajudar a ganhar um Oscar, mas talvez seja interessante contar com as preces da Cidade Dele."
Até.
MV Bill

Ainda segundo Hermano Vianna, é possível evitar que os ânimos se acirrem mais. "Continuo trabalhando para que esse problema (nunca me imaginei envolvido com ele, mas a vida mais uma vez me pegou de surpresa, e, até por um dever de cidadão, não podia deixar as coisas como estavam e voltar para casa tranqüilo, afinal Cidade de Deus é também a minha cidade) seja resolvido da melhor maneira possível", afirmou o antropólogo.