Nascida para sonhar, cantar e compor

Aos 80 anos, Dona Ivone Lara lança seu sétimo álbum, recheado de novas canções de sua autoria

Julio Moura
25/07/2001
Desde os tempos da tia Ciata, compor sambas é negócio para homem. É verdade que Chiquinha Gonzaga, com sua marcha carnavalesca Abre Alas, insinuou que elas poderiam levar algum jeito para a coisa. Entretanto, o que se viu ao longo dos tempos foi uma infinidade de autores masculinos exaltando as fanfarronices da malandragem ou chorando as mágoas de um amor perdido. Isso, se não existisse Dona Ivone Lara. Ao lançar seu sétimo disco, em uma carreira fonográfica iniciada aos 58 anos de idade, Dona Ivone poderia acrescentar o verbo “compor” ao título Nasci Pra Sonhar e Cantar ouvir 30s. Das 14 faixas do novo álbum, produzido para a gravadora francesa Lusáfrica e lançado no Brasil pela Natasha, todas são de autoria de Dona Ivone, com ou sem parceiros. Dez delas inéditas.

“Há quinze anos eu não tinha a oportunidade de gravar um disco com músicas novas. O mercado parecia não querer mais abrir as portas para mim. Durante todo este tempo, somente consegui lançar um álbum, Bodas de Ouro ouvir 30s (1998, Sony), que foi muito mal trabalhado. Além do mais, minha participação na escolha do repertório foi pequena. Quando eu já estava achando que ninguém mais ia querer me gravar, surgiu este convite. Não tenho expectativas. Nos seis discos anteriores, me frustrei. Torço para que com este seja diferente, mas não espero muito”, diz Dona Ivone.

O que parece mágoa, pode ser interpretado como apenas uma maneira simples de levar a vida. Ou de transformar as frustrações em samba:

“Eu queria mesmo gravar um disco só com inéditas. Fazia tempo que vinha compondo coisas novas, algumas com o Délcio (Carvalho), outras com Sombrinha e Nelson Sargento. Mas o povo gosta mesmo é de sucesso, por isso resolvi incluir músicas antigas como Tendência e Nasci Pra Sonhar e Cantar. Mas como ainda tenho mais dois discos no contrato com a gravadora, pretendo incluir outras inéditas no futuro. São tantos os parceiros que às vezes nem me lembro o nome de todos”, despista. E por incrível que pareça, a compositora incansável já tem outras oito músicas prontas para o próximo álbum - o contrato com a Lusáfrica prevê outros três CDs.

A perspectiva de um impulso internacional, à imagem e semelhança de Cesária Évora, estrela-mor da Lusáfrica, também não parece capaz de tirar Dona Ivone de sua mansidão resignada:

“Ih, meu filho, já fui tanto ao exterior. Só na França já fui mais de dez vezes. Cantei em diversos festivais, a convite de Martinho da Vila e Paulinho da Viola. Me apresentei na Argentina, Portugal, Angola, Alemanha e até na Martinica. O pessoal da gravadora está agendando alguns shows na Europa, em outubro. Para mim, tudo bem. Mas eu gostaria mesmo era de ser bem trabalhada aqui. Essa gravadora que está lançando o disco no Brasil (Natasha) é da mulher do Caetano? O Caetano é meu amigo, meu parceiro. Sei que ele gosta de mim. Espero que a gravadora também goste. Prefiro uma companhia pequena que trate bem do meu disco do que uma grande que o trabalhe de qualquer maneira”, comenta.

De concreto, já existe a participação no Brazil Fest: no dia 26 de agosto, Dona Ivone canta em Nova York, no já tradicional festival de música brasileira promovido por Nelson Motta. "Já arrumaram até um agente só para representar meu nome lá no exterior. Fiquei muito contente com essa oportunidade. Só quero agora ter a chance de conhecer pessoalmente o José da Silva - quem teve mais contato com ele foi a Miriam, minha empresária - e agradecer ”, diz a cantora, referindo-se ao empresário português que dirige a Lusáfrica e que foi o responsável pelo sucesso mundial de Cesária Évora.

A alforria autoral e conceitual foi uma exigência de Dona Ivone. Ela mesma indicou o produtor e arranjador do CD, João de Aquino, juntamente com o produtor-executivo Paulo César de Figueiredo. A escolha do repertório teve o dedo ainda de sua empresária, Miriam Souza. Tudo sob os auspícios e a concordância do diretor da Lusáfrica e produtor fonográfico do disco, o português José da Silva. João de Aquino destaca o caráter “de raiz” do trabalho:

“O disco possui uma forte característica percussiva. A percussão é o coração do sambista. Para criar os arranjos, me inspirei em um LP que produzi para o Candeia, chamado Axé. Destaco também o coro, com as presenças de Mart’nália, Surica e Nadinho da Ilha. Não é um coro tradicional, mas um vocal soberano, adequado ao reinado de Ivone”, elogia.

O arranjador considera Dona Ivone Lara uma “divisora de águas” da música brasileira:

“Acredito que música seja 90% emoção e a Dona Ivone se encaixa perfeitamente nesta minha crença. Se você põe emoção, o disco passa sinceridade. Neste aspecto, ela é a maior de todas. É exatamente este componente de sinceridade que está faltando ao samba atual. O pagode deixou tudo muito pasteurizado. Além de compor de maneira magistral, ela está cantando como nunca. Ou você pensa que é mole ter quase 80 anos e cantar daquele jeito?”.