Ney Matogrosso: um sessentão brejeiro, engajado e provocante

Cantor lança CD dedicado à MPB dos anos 30 e 40, critica a vulgaridade das letras de funk e se empenha em campanha contra a lepra

Rodrigo Faour
14/03/2001
Ele continua o mesmo. Corpo e voz em forma, provocante a seu modo, destemido ao dizer o que pensa de tudo e de todos - sem perder a classe, é claro! – e disposto a gravar um repertório de qualidade, sem espaço para concessões a uma indústria ávida pelo descartável. Estamos falando de Ney Matogrosso, que acaba de lançar Batuque (leia crítica), um CD dedicado ao repertório da MPB dos anos 30 e 40, com direito a várias canções celebrizadas por Carmen Miranda (Adeus Batucada, O Que É Que a Baiana Tem?, Samba Rasgado, Coração, Bambo de Bambu, Bamboleô, ...E o Mundo Não se Acabou), Anjos do Inferno (Vatapá), Bando da Lua (Maria Boa), Nelson Gonçalves & Isaurinha Garcia (Teu Retrato), Gastão Formenti (De Papo Pro Ar) e Ademilde Fonseca (Tico Tico no Fubá e Urubu Malandro).

A idéia de penetrar nesse repertório nasceu há um ano, após uma participação de um show em São Paulo do grupo Nó em Pingo D’Água, que homenageava Carmen Miranda. A seguir, entrou em estúdio, registrou quatro canções testadas no palco e se empolgou em prestar um tributo à Pequena Notável. Ele não contava, porém, que ficaria apaixonado por músicas como De Papo Pro Ar e Teu Retrato, jamais gravadas por Carmen – ambas contidas numa fita presenteada a Ney pelo compositor Fausto Nilo. "Nesse momento, ficou claro que eu não poderia me centrar apenas no repertório de Carmen. Então parti para gravar canções que fossem representativas dos anos 30 e 40", justifica o cantor, que contou ainda com a ajuda de pesquisadores como Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello para chegar às 13 faixas do CD. "Todas fizeram muito sucesso naquela época. A única que eu não conhecia era Teu Retrato, mas Jairo me garantiu que ela fez sucesso. Tanto que as pessoas ligavam para as rádios pendido que ela fosse tocada e ainda a dedicavam a amigos."

Ney diz estar absolutamente à vontade com esse repertório. Sente-se como se tivesse cantado essas músicas a sua vida inteira. Ele afirma ainda ser proposital o tom ingênuo das letras que permeiam o disco. "Fiz questão de frisar esse caráter ingênuo. Tanto que algumas músicas nem entraram por não terem essa característica, caso de Filosofia do Noel Rosa, que não tem nada de ingênua", explica. O cantor admite que essas músicas não deixam de ser uma opção para o ouvinte farto da falta total de sutileza do atual modismo musical: o funk carioca, que tomou o Brasil desde o começo do ano.

"Não sou contra nada. Mas acho que mais uma vez a indústria quer ganhar dinheiro com o produto mais descartável possível. Antes só se ouvia o sertanejo romântico, depois vieram outros modismos e agora se investe no funk, que nem funk é, e sim uma outra coisa que a gente ainda não sabe denominar", opina. Ao participar do carnaval baiano neste ano, num trio elétrico ao lado de Caetano Veloso e Gilberto Gil, ele ficou impressionado ao ouvir funks como Tapinha (Não Dói) em tudo quanto foi lugar na Bahia, inclusive em todos os trios. "Esse funk é muito machista e vê a mulher de forma preconceituosa. A sexualidade abordada nessas músicas é muito grosseira. E digo isso numa boa porque não sou puritano. Mas isso não vem de agora. Aquele samba da boquinha da garrafa desceu ao nível mais baixo que uma música poderia chegar. Não vejo nada de sensual e erótico em músicas como essas, são grosseiras mesmo. O problema maior não é nem o ritmo. É que o nível das palavras na nossa música desceu muito, ficou muito vulgar".

Ney também se assusta ao ver crianças dançando coreografias como as dos funks e de sambas como Boquinha da Garrafa. "Sempre liberei a sensualidade e a sexualidade no palco de uma forma diferente da que se faz hoje. Tenho certeza que quando uma criança me via era como se eu fizesse parte de algum desenho animado ou algo parecido. A minha maneira de lidar com o sexo era outra", diferencia.

Carnaval, tapinha e genitálias
Mas não foi apenas a má impressão do funk Tapinha (Não Dói) que Ney guardou do carnaval baiano. Ao contrário - cantando pela primeira vez num trio elétrico, ele se divertiu muito. A princípio havia ensaiado cinco números de maior apelo carnavalesco de seu repertório – Não Existe Pecado ao Sul do Equador, O Vira, Homem com H, Folia no Matagal e Pro Dia Nascer Feliz –, mas na hora agá, ele acabou ficando o tempo todo no palco, ao lado dos colegas Caetano e Gil, ajudando-os a desfiar seu imenso repertório. Ao final, confessa que ficou exausto e, embora não pretenda repetir a experiência tão cedo, achou o saldo positivo, especialmente por ser um gênero de show completamente diferente do padrão ao qual ele estava acostumado.

"É um tipo de show no qual ficamos muito próximos ao público e muito expostos a qualquer tipo de reação – boa ou ruim. Felizmente, nessas quatro horas e meia de show, não vi nada de agressivo. E olha que eu estava seminu, me requebrando todo, no meio da rua. É diferente de estar num teatro, protegido por seguranças. Só houve uma pessoa que perdeu o controle, mas não de uma forma negativa. Um cara ficou balançando o pau pra mim. Aí, eu fiz isso também. (risos) Por isso, acho que ele ficou sem graça e parou", ri.

Novo show terá ênfase na latinidade
Sereno, Ney não se preocupa por não colecionar sucessos em rádio como fazia nos anos 70 e início dos 80. A razão? Exatamente o sucesso de público em seus shows, seja em teatros e casas de show ou ao ar livre, como o do carnaval baiano. "Não tenho do que me queixar. Meus shows estão sempre cheios, com renovação de público. Vejo crianças e adolescentes na platéia. E jamais imaginei que Poema, do Cazuza e Frejat, do meu penúltimo CD Olhos de Farol fosse tocar no rádio. E tocou bem, não como Homem com H, mas tocou". Mas será que sua gravadora, a Universal, anda cobrando dele maiores vendagens? "Eu é que cobro deles", diverte-se.

Enquanto a mídia radiofônica não confere a Ney o espaço que ele merece, ele vai apostando cada vez mais em sua consagrada performance nos palcos. Ele já tem inclusive data para estrear o novo show. Será dia 1º de junho, no imenso palco do ATL Hall, na Barra, Zona Oeste do Rio. "Vou estrear lá apesar de achá-lo um palco grande demais. Prefiro espaços um pouco mais intimistas. Dessa vez não farei Canecão porque é uma casa difícil de acertar as contas. O ATL é mais flexível, está mais dentro da realidade econômica do país. Em duas semanas de casa boa, podemos recuperar o investimento", compara ele, que pretende resgatar sua latinidad com força total no novo espetáculo.

"Esse show vai ser ainda mais latino que o anterior. Acho que o repertório do novo disco me remete a um universo latinoamericano que era muito presente no rádio brasileiro. Além das músicas do CD, em princípio, penso em colocar todas as canções em espanhol que já gravei, pois são da mesma época dos sambas e choros desse disco. Também pensei em outras que já gravei, como (o fado) Barco Negro", antecipa. Mas que músicas em espanhol são essas? Ney não diz, mas revirando seu repertório pode-se apostar em números como Dos Cruces, Alma Llanera, Cubanacan, Babalu ou Vereda Tropical. Ney ainda não começou a ensaiar, só adianta que formará uma nova banda para o espetáculo.

No mais, o cantor está engajado na campanha contra hanseníase (lepra). Na contracapa do CD ele fornece um telefone (0800 0262001) para que as pessoas tenham esclarecimentos sobre a doença e saibam se cuidar. "Há 44 mil pessoas infectadas com essa doença por ano no Brasil. Elas precisam saber que a hanseníase tem cura e remédio de graça nos postos de saúde. Há um convênio com uma multinacional que fornece o remédio gratuitamente até 2005. Se o Brasil não erradicar a doença até lá, será um Deus nos acuda porque o remédio é caro e não haverá mais subvenção", alerta o cantor, que já tem uma forte aliada em sua campanha. A escritora Gloria Perez a seu pedido abordará o assunto em sua próxima novela global.

Como se vê, aos quase 60 anos (!) – que completa no dia 1º de agosto – Ney continua o mesmo de sempre e dá de ombros às cobranças típicas de todos para alguém que entra na faixa dos sexagenários. "O segredo é não dar bola para a idade. Às vezes, fico pensando: ‘Como será que tenho que ser aos 60? Será que eu teria de me frear, não soltar a franga?’ Mas aí não vou ser eu... Então continuo sendo como sou e estou dando provas de que é possível ter 60 anos e não ser um velhinho caquético", dispara. Parafraseando uma recente letra de Aldir Blanc, aos 60 anos, Ney Matogrosso insiste na juventude.