Ney Matogrosso volta o olhar para Cartola

Cantor segue com seu resgate do passado da música brasileira e grava belo tributo ao sambista mangueirense

Marco Antonio Barbosa
22/05/2002
O passado continua a se revelar uma fonte inesgotável para a criatividade de Ney Matogrosso. O cantor, que deslumbrou o Brasil inteiro com a turnê Batuque no ano passado, volta sua vocação de mergulhador ao resgate da obra imortal de Angenor de Oliveira - Cartola. O encontro entre o mais famoso dos mangueirenses e o intérprete que mais tem valorizado a época de ouro de nosso cancioneiro se deu de maneira a princípio modesta - como um CD que seria mero adendo de um livro - mas tomou vida própria, virou lançamento per se, show e vai render uma turnê. Ney Matogrosso Interpreta Cartola (Universal) merece toda esta atenção e até mais.

"Eu pedi autorização a Cartola para cantar suas músicas. Ele não só me permitiu, como simplesmente veio e me ocupou durante o período da gravação", elabora Ney em entrevista ao Cliquemusic sobre o disco. Apesar de já ter passado antes pela obra de Cartola (já havia cantado antes, em shows, coisas como O Mundo É um Moinho), o cantor encontrou no repertório do sambista uma fonte inesgotável de novidades. "Tudo relacionado a Cartola para mim é uma surpresa", fala Ney. "Apesar de não viver no mesmo universo que ele criou em suas músicas - que um clima sombrio, pesado - consegui compreender perfeitamente sua sensibilidade. Foi uma empatia surpreendente, que eu não esperava ter. Ele era um espírito simples, mas cheio de requinte. Incrível como alguém que teve a vida iletrada que Cartola levou conseguiu criar versos comparáveis aos de Chico Buarque", analisa o intérprete.

O disco, produzido por João Mario Linhares e o músico Zé Nogueira, traz 12 faixas que sumarizam, com uma ou outra exceção, o creme da criação de Cartola. Cordas de Aço, O Sol Nascerá, As Rosas Não Falam, Corra e Olha o Céu, Acontece, O Mundo É um Moinho e Ensaboa são algumas das mais famosas incluídas no pacote. "Não poderia deixar de recriar todas essas, são músicas emblemáticas demais", diz Ney. Ao mesmo tempo, aparecem aqui e ali faixas menos conhecidas. "Desfigurado e Senões eu não conhecia. Só fui incluí-las depois da pesquisa de repertório, quando ouvi uma fita com raridades que a neta de Cartola me passou", conta Ney. Guiado pelos arranjos de Ricardo Silveira, o álbum ganhou uma sonoridade "de câmara", conforme o próprio cantor define. "Quis fazer um formato menos tradicional, dando ênfase às melodias. Talvez no mercado exterior acabem até classificando o CD como um disco de jazz. Mas essa foi minha intenção desde o começo", confirma o cantor.

Poucos dias antes do lançamento oficial do CD, Ney testou seu tributo a Cartola com quatro shows (dois no Rio e dois em São Paulo) no fim de abril, que emocionaram os privilegiados espectadores. A banda comandada pelo violonista Marcelo Gonçalves acompanhou Ney pelo repertório do álbum e mais algumas pérolas não inclusas no disco, como Não Quero Mais Amar a Ninguém. "Vamos incluir também no setlist Basta de Clamares Inocência e um arranjo radical para Autonomia", revela Ney, que quer também cantar Preciso Me Encontrar no bis. "A música é de Candeia, mas tem tudo a ver com o universo de Cartola", acredita. Ele adianta também que a próxima tiragem do CD vai incluir como bônus Não Quero... e Autonomia. Ainda sem ter uma turnê com datas definidas, o cantor pretende fazer mais shows com o repertório de ...Interpreta Cartola, mesmo seguindo até setembro com a excursão de Batuque ouvir 30s .

Insólito é que o tão aclamado e belo álbum-tributo foi concebido como mero apêndice do livro Ney Matogrosso - Ousar Ser, que seria lançado no começo de maio mas que ainda não chegou às lojas. O livro reúne fotos de Ney tiradas ao longo de duas décadas de sua carreira pelo fotógrafo Luiz Fernando da Fonseca, falecido em 1990. "A idéia para este livro já tem uns 15 anos", diz Ney, "e resolvemos tirá-la do papel agora." Acompanhando as fotos de Fonseca, o volume tem um texto escrito por Bené Fonteles (autor do livro Gil Luminoso, sobre Gilberto Gil) traçando um perfil da vida e obra de Ney. E o CD, gravado de forma independente, seria encartado junto na capa do livro, editado pela Universidade de Brasília. "O evento era para ser o livro, o CD nem era para chamar a atenção. Mas o livro foi atrasando, atrasando... daí o show e o disco terem tomado vida própria", fala Ney. Apesar do caráter de "brinde", o disco foi concebido com muito cuidado. "Como o livro ficou belíssimo, quis gravar um disco à altura", fala o cantor. No começo de 2002, em pleno processo de gravação, Ney - que estava sem contrato com gravadora alguma - recebeu a proposta da Universal de "encampar" o álbum.

Depois do mergulho em Cartola, Ney toma fôlego para, em 2003, gravar e cantar ao vivo o tão aguardado projeto com músicas inéditas de Cazuza. "O interessante é notar como eles dois eram ligados", teoriza Ney. "Cazuza tinha uma admiração genuína por Cartola, desde antes do Barão Vermelho. E ambos eram espíritos boêmios, homens de noitadas." Após dois discos seguidos cantando músicas antigas (e alheias), Ney se diz preparado para retomar o "curso normal" de sua carreira. "Só consegui gravar projetos como o Batuque e este disco do Cartola porque a indústria musical me respeita como artista. Projetos fechados como esses exigem muito de mim, uma sintonia fina bem complicada. Mas sinto falta de cantar meus sucessos. Quero, já no ano que vem, voltar a interpretar as músicas dos Secos e Molhados, minhas próprias músicas antigas."