Noel Rosa completo, pela primeira vez

Depois de um colossal trabalho de pesquisa e restauração sonora, professor paulistano de biologia reúne toda a obra do Poeta da Vila em uma caixa com 14 CDs

Carlos Calado
17/11/2000
Um objeto de desejo para qualquer apreciador da música popular brasileira chega ao mercado na próxima semana. A caixa Noel Pela Primeira Vez (lançamento da Funarte com a gravadora Velas) reúne em 14 CDs a obra integral de Noel Rosa (1910-1937), que estaria completando 90 anos de idade no próximo dia 11. Nas 229 faixas dessa ambiciosa edição, o ouvinte terá acesso a todas as primeiras gravações das composições que o Poeta da Vila escreveu durante seus breves seis anos de atividade musical. “Entre outros grandes compositores, como Ary Barroso e Lamartine Babo, Noel sempre chamou mais minha atenção por ser um artista multifacetado. Ele fazia suas sátiras e suas crônicas sempre com a mesma seriedade, por mais banal e simples que suas composições pudessem parecer”, diz Omar Jubran, o pesquisador e professor de biologia paulistano, que passou 11 anos procurando, recuperando e remasterizando as gravações incluídas nessa edição.

“Noel foi o grande inovador de nossa lírica, o primeiro a mostrar que tudo (fome, miséria, mentira, futebol, jogo do bicho, assassinato, roubo, prostituição, homossexualismo, bebida, política, corrupção) podia ser convertido em letra de música”, observa João Máximo, biógrafo do compositor, no texto de abertura do livreto de 160 páginas, que faz parte da caixa, incluindo todas as letras das canções e fichas técnicas das gravações. As canções foram organizadas em ordem cronológica, opção que permite acompanhar a evolução de Noel como compositor.

Da temática sertaneja de composições como a toada Festa no Céu e a embolada Minha Viola (ambas compostas em 1929 e gravadas pelo próprio autor), passa-se ao encanto de Noel pelos negros do morro, flagrado em sambas como Mulato Bamba (1931), até se chegar a seus sambas mais elaborados, como Último Desejo (1937). Além do próprio compositor, que pode ser ouvido em dezenas de faixas, assim como Aracy de Almeida (sua intérprete favorita), outros cantores notáveis se sucedem, como Silvio Caldas, Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Aurora Miranda, Marília Baptista, Elizeth Cardoso, João Nogueira e Jamelão. Gravações mais recentes, realizadas na última década, destacam ainda Vânia Bastos, Ná Ozzetti e Johnny Alf.

Omar Jubran conta que seu interesse por Noel foi despertado durante sua infância, entre os anos 50 e 60. “A gente ainda não tinha TV em casa e eu ficava ouvindo rádio, que naquela época era muito mais segmentado do que é hoje. Havia várias emissoras que tocavam compositores mais antigos da música brasileira”, recorda o pesquisador, hoje com 47 anos.

Dono de uma grande discoteca (atualmente com cerca de 15 mil títulos, entre 78 rotações, LPs, compactos e CDs de vários gêneros musicais), Jubran resolveu organizá-la pela primeira vez, em 1987, época em decidiu investir mais em sua já vasta coleção de gravações do Poeta da Vila. O lançamento do livro Noel Rosa – Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, foi fundamental para que ele desse seqüência à pesquisa. “Além de ser um livro diferente, por causa de seu rigor científico, ele trazia uma relação completa de todas as composições do Noel. Resolvi checar quantas eu tinha e percebi que já possuía 70% desse material. Virou ponto de honra para mim conseguir o que faltava”, recorda.

Cooperativa
Em meio à pesquisa, Jubran começou a se interessar por equipamentos de áudio que permitissem recuperar gravações em estado precário. Investiu nesses aparelhos, até que seu saldo bancário entrasse no vermelho. “Eu ficava chateado. Toda vez que saía algum novo CD de Noel eram sempre as mesmas músicas: Três Apitos, Feitiço da Vila e coisas assim. Decidi entrar de cabeça nisso, mas esses softwares de recuperação sonora são muito caros. Cheguei a vender um carro, em 93, mas mesmo assim não consegui o dinheiro suficiente”, relembra. A solução foi procurar uma roda de amigos e propôr a eles que comprassem a coleção de Noel antecipadamente, para ajudá-lo a prosseguir. “Achei oito doidos que confiaram em mim, na verdade, pagando o preço de duas coleções para receberem apenas uma, num prazo que eu nem mesmo poderia precisar qual seria”, conta.

Junto com os CDs, a caixa traz um livreto de 160 páginas
Para reunir as gravações que faltavam, Jubran teve que viajar por várias cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. As gravações mais difíceis de conseguir (já não se lembra exatamente quais eram) pertenciam a um renitente colecionador do sul de Minas, que teve de ser “amaciado” aos poucos, com muita paciência. “Ao telefone, ele me disse que tinha os discos, mas que eu não iria ouvi-los, nem mesmo ver de que cor eles eram”, relembra.

Delicada também foi a operação para recuperar um 78 rotações que recebeu quebrado em três pedaços. Depois de colá-los, com o auxílio de uma lupa e um estilete, eliminou o excesso de adesivo. “Tive muita sorte porque os sulcos coincidiram”, festeja, calculando que gastou cerca de 50 horas de trabalho, só para eliminar os ruídos produzidos pelas emendas. O resultado ficou tão bom que Jubran recusa-se a revelar que faixa é essa, desafiando seus amigos técnicos de gravação a descobri-la. Seu preciosismo levou-o até a ficar em dúvida quanto a incluir na caixa algumas canções que o grupo espírita Aquarius afirma terem sido psicografadas por Noel. “Com todo respeito, decidi ficar apenas no plano material”, conclui.

Em janeiro de 1998, o trabalho de pesquisa, restauração e remasterização de todo o material estava terminado. Depois que as primeiras notícias chegaram à imprensa, o telefone de Jubran tocou bastante. “Fui procurado até por repórteres interessadas em entrevistar Noel Rosa”, diverte-se. Mesmo assim, só conseguiu fechar o contrato de edição com a Funarte e o Ministério de Cultura depois de procurar vários órgãos federais e estaduais de cultura. Entre vários absurdos, chegou a ouvir a sugestão de que fizesse somente uma compilação com as “melhores” faixas. Difícil também foi o processo para conseguir as permissões de todos os intérpretes e parceiros de Noel ou de seus herdeiros – trabalho coordenado por Luiz Pedreira, que se arrastou por mais de um ano. “Fiquei muito agradecido ao Vitor Martins, da Velas, que apoiou minha idéia de não subtrair nenhuma faixa da coleção”, reconhece.

Jubran ainda leciona Biologia, atualmente, num colégio particular de São Paulo. Dizendo-se desiludido com a situação da educação no país, espera que a repercussão desse trabalho o ajude a viabilizar outros projetos semelhantes, como reunir as obras completas de Ary Barroso, Lamartine Babo e Adoniran Barbosa, já engatilhados. “Praticamente já tenho todas essas gravações”, revela. Outro projeto, com o título provisório de Carnaval do século XX, reuniria músicas de carnaval compostas entre 1899, ano em que Chiquinha Gonzaga compôs a pioneira Abre-Alas, e meados dos anos 70, época em que compositores deixaram de criar para o carnaval. “A idéia é incluir 15 ou 20 marchinhas importantes, ano por ano, e fazer uma análise de todas elas, localizando o momento histórico. Já consegui quase três mil músicas”, calcula o pesquisador.