Nora Ney e Jorge Goulart: o casal mais resgatado do ano

O casal 20 da MPB voltou à mídia no ano 2000 em nada menos que oito CDs. Apesar de não cantarem mais por motivos de saúde, Nora e Jorge mantêm o bom humor. Ela diz gostar até de rap e Zeca Pagodinho. Ele, de Francis Hime

Rodrigo Faour
22/12/2000
Ela é a pioneira das cantoras de estilo diseuse no Brasil. E ele um dos cantores de voz mais potente que o país já conheceu. Diferenças que fazem de Nora Ney e Jorge Goulart um dos casais mais interessantes e originais da MPB. Felizmente, nesse ano 2000 ambos foram bastante lembrados pela indústria fonográfica que tanto negligencia os mitos do passado de nossa música. Várias de suas gravações clássicas foram relançadas no formato digital. O selo Revivendo, de Curitiba, lançou o CD Amor, Meu Grande Amor, com 21 músicas, dedicado ao casal, a Som Livre reeditou um álbum de Nora (Tire o Seu Sorriso do Caminho, 1975) e um do casal (Jubileu de Prata, 1977), o selo paulista Intercd fez a compilação Nora Ney e Jorge Goulart. Para completar, um projeto do produtor Pelão recuperou o belo programa Ensaio (TV Cultura/SP) que Nora gravou em 1973, resultando num CD da série A Música Brasileira deste Século por Seus Autores e Intérpretes. Eles ainda tiveram algumas faixas nas coletâneas As Eternas Cantoras do Rádio e Os Eternos Cantores do Rádio, via BMG, e no CD As Grandes Versões (Revivendo).

Juntos há quase 50 anos (conheceram-se no dia 1º de maio de 1951, no Copacabana Palace), vivenciaram do maior glamour às maiores barras pesadas juntos. Colecionaram grandes sucessos na MPB dos anos 50 e 60, venderam muitos discos e se apresentaram em várias partes do mundo, sendo inclusive dois dos primeiros artistas brasileiros a atuarem na ex-União Soviética, na época da Cortina de Ferro. Falando em política, o casal também teve uma grande atuação nessa área. Filiados ao Partido Comunista, eles foram de uma geração que acreditava num mundo mais justo, com menos diferenças sociais, e pagaram um preço alto por defenderem seus ideais socialistas. O criador de sucessos como Jezebel, Dominó, Cabeleira do Zezé e Laura conta que quando veio o golpe militar de 1964, muitos de seus discos chegaram a ser atirados pelas janelas da Rádio Nacional por ele ser considerado subversivo. Nessa época, os dois também passaram apertos financeiros fortes durante seu autoexílio, quando viajaram pela Europa e o Leste Europeu. Para culminar, Nora também não se controlou e virou alcoólatra, mas com muito empenho conseguiu superar o vício.

Por causa da virada estilística da MPB pós-bossa nova e seus problemas com a ditadura, a dupla teve seu campo de atuação mais restrito, mas mesmo assim atuou até quando a saúde de ambos permitiu. Jorge só parou de cantar em 1982, quando foi atingido por um tumor nas cordas vocais e teve de retirá-las. Desde então, fala por meio um aparelho na laringe. Nora, por sua vez, depois de atuar ao lado de outras veteranas no grupo As Eternas Cantoras do Rádio a partir de fins dos anos 80, teve sua cassação definitiva em 1992, quando um derrame afetou suas cordas vocais. Mas a intérprete de Ninguém Me Ama, Bar da Noite e De Cigarro em Cigarro é dura na queda, pois já teve dois derrames, um câncer na bexiga, uma pneumonia, uma fratura na perna... além de um enfisema crônico. Curiosamente, saiu de todos muito bem. Anda atualmente apoiada numa bengala, mas preserva o bom humor. Jorge idem. Ambos moram numa casa numa rua tranqüila no bairro do Grajaú, zona norte do Rio, e relembram com alegria e uma ponta de nostalgia e orgulho as suas glórias do passado, em entrevista a CliqueMusic.

Foto: Rodrigo Faour
Nora Ney e Jorge Goulart
CliqueMusic – Como se pode verificar no recém-lançado CD Amor, Meu Grande Amor, que resgata suas quatro primeiras gravações realizadas em 1945, antes de seu estouro no começo dos anos 50, você imitava muito o Orlando Silva. Quando conseguiu burilar seu estilo e soltar a voz mesmo?
Jorge Goulart
– Foi por causa do teatro. Na época que comecei eu era seresteiro. Andava pelas ruas com violão, junto com Roberto Paiva, João Petra de Barros e a turma da Vila Isabel. Fazíamos serestas, cantávamos as músicas de Cândido das Neves e outros autores que eram gravadas pelo Orlando. Quando fui fazer um teste na RCA Victor a primeira coisa que o Victor Latari me falou foi o seguinte: "se você fizer o que o Liberman (diretor da companhia) gosta, você vai agradar". E isso ficou na minha cabeça. E o que o agradava era o padrão Orlando Silva. Quando fui atuar no teatro de revista, em operetas, não tinha microfone, então fui obrigado a soltar a voz e encontrei meu estilo.
Nora Ney – Diz a ele quem foi que fez você dar agudos...
Jorge Goulart – Foi a Nora. Havia um si bemol que eu achava que não era capaz de dar e eu consegui, cantando Jezebel...
Nora Ney – Ele só ficou famoso depois que me conheceu (risos).

CliqueMusic – Nora, você foi a primeira pessoa a gravar Tom Jobim?
Nora Ney
– Sim. O Jobim era ensaiador da Continental, foi levado até lá pelo Dr. Sávio, que era diretor geral da gravadora. Quem acreditou nele fui eu. A gente tem que falar a verdade... Ele mostrou a todo mundo suas músicas e ninguém gravou. Quando fui gravar meu primeiro LP, ele disse que queria me mostrar duas músicas. Uma era O que Vai Ser de Mim ("Já fiz reza/ Fiz macumba...") e Solidão ("Sofro calada na solidão..."). Depois é que veio a Sinfonia do Rio de Janeiro, do Jobim e do Billy Blanco, que eu e o Goulart participamos.
Jorge Goulart – Começaram a dividir os temas: Morro Triste, Morro Alegre, Ipanema, Carnaval. Chegaram a colocar até a Praça Mauá, mas tiveram que tirar porque ficaria muito grande e não caberia no disco. Acabou que a Dolores Duran a gravou em disco à parte. Então, começaram a dividir as vozes. Como a Nora tinha voz triste escalaram-na para cantar o Morro Triste. Já o Morro Alegre tinha que ser alguém com voz para fora: então ficou comigo. A Emilinha cantou a parte do Carnaval e por aí foram dividindo...
Nora Ney – Tá bem, mas a Sinfonia veio depois. Primeiro, veio meu disco. Não tô falando mentira, não! (risos)

CliqueMusic – Nora, por que as músicas que você cantava eram tão tristes, doídas, de dor-de-cotovelo?
Nora Ney
– Tenho a impressão que era pelo timbre de voz que eu tinha. Caíam melhor. Mas não tinham nada a ver comigo, como pessoa...

CliqueMusic – As músicas do seu repertório falavam muito em afogar as mágoas... Você chegou a ver pessoas sofrendo por amor nas mesas de bar?
Nora Ney
– Teve uma que se suicidou na Praia Vermelha, num bar, ouvindo Ninguém Me Ama. A imprensa fez aquele auê. Coitada da moça, se tivesse conversado comigo não se suicidava. Sou totalmente diferente. Sou irreverente, mal educada, pichadora... (risos) Sou muito franca, não gosto de esconder nada.

CliqueMusic – Quem é que escolhia o repertório de vocês naquela época?
Jorge Goulart
– Quando começamos a gravar, o cantor tinha plena autonomia de escolher seu repertório. Se eu ou ela disséssemos que não queríamos gravar determinada música, não gravávamos mesmo.
Nora Ney – Uma vez o Goulart já tinha feito o disco dele de carnaval. E o Roberto Faissal me mostrou uma marcha na Rádio Nacional. Quando eu ouvi, pensei: "Puxa, isso vai ser um sucesso". Ele me perguntou se o Jorge já tinha gravado seu disco de carnaval. Eu lhe disse que já. Ele ficou com pena e eu fui para a casa com aquilo na cabeça. Quando cheguei falei para o Goulart: "Ouvi uma marcha que se você gravar, vai arrebentar no carnaval". Então, ele foi atrás da música, ouviu, gostou e ele mesmo produziu o disco na Mocambo.
Jorge Goulart – Pedi à minha gravadora, Continental, para fazer mais um disco de carnaval, além do outro que já havia gravado. Aí, o Braguinha (diretor artístico da gravadora) me disse que se me desse a chance de gravar mais um disco, teria de dar a todos os outros cantores. Então, pedi a ele que me liberasse para gravar um, de forma independente. Telefonei para o Severino Araújo – meu maestro de carnaval, fazíamos muitos bailes juntos – e disse a ele que não tinha dinheiro, mas como tinha certeza do sucesso, o pagaria assim que recebesse. Fiz o mesmo acordo com os compositores das músicas – João Roberto Kelly e Roberto Faissal – e com a editora Vitale. Todos concordaram. Sabe qual era a música? Cabeleira do Zezé.
Nora Ney – Viu como sou importante na vida dele? (risos)

CliqueMusic – Como era a relação de vocês, artistas, com o presidente Getúlio Vargas?
Jorge Goulart
– O Getúlio foi o presidente que deu o arranco para a indústria nacional. Antigamente, o Brasil era um país agrícola. Então, ele fez o avanço da tecnologia. Todo fim de ano nós passávamos com ele. Ele adorava os artistas, de todos os ramos: música, novela, carnaval... Era tipo daquele político a que o Brasil se acostumou, o "paizinho" que ia resolver tudo...
Nora Ney – Ele era meu fã, adorava Menino Grande.

CliqueMusic – O pessoal do Partido Comunista não ficou furioso porque a Nora gravou um rock americano, o Rock Around the Clock, em 1955?
Nora Ney
– Imagina... claro que não. Eu já tinha gravado João da Silva para eles, que dizia: "João da Silva/ Cidadão sem compromisso/ Não manja disso/ Que o francês chama l’argent/ Cobrando royalties/ Dinheiro disfarçado/ É tapeado desde as cinco da manhã/ Um palmolive ao chuveiro dá combate/ Usa colgate, faz a barba com "gillé"/ Pagando royalties/ Dinheiro disfarçado/ É tapeado desde às cinco da manhã/ do pão que come/ Do Leite em pó ao Nescafé...". Primeiro gravei essa música num 78 rpm para a UNE (CPC) e depois na Continental.

CliqueMusic – Foi difícil, Nora, conseguir contrato para começar a gravar por causa de seu timbre diferente para os padrões da época? Nora Ney – Sou uma mulher que, graças a Deus, teve muita sorte nesse sentido. Eu era do Sinatra-Farney Fã-clube. Fazíamos música todo fim de semana. Eu, Johnny Alf, Lúcio Alves, Klecius Caldas, Carlos Manga... o Dick fazia o show e nós, do fã-clube, que éramos todos amadores, também nos apresentávamos. O Manga preparava o nosso show. Antes do Dick, que era nosso patrono, entrar para o seu show fazíamos o nosso. Aí, o Joel Menezes e o Lúcio Alves me levaram à Rádio Tupi. Como eu cantava muita coisa do Noel Rosa, fui cobrir a folga da Aracy de Almeida, ao lado do Roberto Paiva. Eu cantava também música americana, no programa Fantasia Musical, de José Mauro. Inicialmente, eu queria cantar com o pseudônimo de Nora May. Um dia recebi uma carta de uma fã me chamando de Nora Ney. Me lembro até do nome dela, chamava-se Mimi Xavier. Aí o Sergio Vasconcelos me disse: "Deixa, Nora! Ele soa bem e duas letras dobradas até dão sorte". Daí, comecei a fazer outros programas, como Viva o Samba!, quando apareceu a chance de cantar no Copacabana. O maestro Copinha foi na Rádio Tupi me procurar para fazer porque a Carmélia Alves tinha saído e o Caribé da Rocha queria substituí-la. Como eu cantava em vários idiomas, não teve problema.

Acontece que eu ainda era casada com meu primeiro marido, um inferno de vida, estava em vias de me separar. Então, indiquei a Doris, o problema é que ela era menor, mesmo assim conseguiu que o juiz a liberasse, contanto que a mãe fosse acompanhá-la. Mas assim mesmo o Caribé não se conformou e veio falar comigo de novo. Foi quando, pouco antes de me desquitar, levei meu ex-marido para falar com Caribé. Ele viu que era um ambiente fino e consentiu que eu fosse trabalhar lá. Dei sorte. Ganhei 12 contos para ser crooner no Copa. Era um bom dinheiro. Cantava todo dia à meia-noite, e o espetáculo era transmitido ao vivo para o programa Ritmos da Panair, que ia para todo Brasil. Cantava de tudo – eu, Doris e Goulart. Era crooner mesmo, meu número era 22. Cantava muito Noel Rosa, música francesa, boleros, coisas do repertório da Ella Fitzgerald. A Marlene vivia lá toda noite, se dava com Linda Batista, namorada do Caribé. Ela vivia atrás do Vitor Costa, diretor da Rádio Nacional, dizendo que ele tinha que ver uma cantora diferente que cantava ali. E ele acabou indo. Pediu ao maître que eu cantasse qualquer coisa de Noel. Cantei Último Desejo. Ele ficou encantado. Foi na coxia e me perguntou se eu queria ir para a Rádio Nacional. Só que eu tinha assinado contrato com a Tupi, era amadora. Aí, Sergio disse: "Ah, vai para lá que vai ser melhor pra você". Ele me adorava.

Dali é que conheci Antonio Maria – na parte de baixo da boate tinha um barzinho e a gente ficava conversando – e ele me mostrou suas músicas. Eu lhe prometi que quando tivesse a chance de gravar, gravaria uma música dele no meu primeiro disco. E assim foi feito: gravei Onde Anda Você, Menino Grande e depois Ninguém Me Ama.

CliqueMusic – Não teve nenhum espírito de porco para te criticar, dizendo coisas do tipo: "ah, essa mulher não canta nada", por causa do seu estilo diseuse?
Nora Ney – Não. Todo mundo gostou muito de mim logo de cara porque eu era diferente. Realmente eu sou de uma época que quanto mais agudo você desse, melhor. Acontece que eles achavam que para beber era melhor me ouvir. É muito melhor beber com uma voz suave do que com uma voz aguda, gritando toda vida (risos). O meu público era muito selecionado. Não era cantora de "É a Maior!" Era cantora de "Bravo!".

CliqueMusic – Se vocês pudessem gravar hoje, que tipo de música estariam cantando?
Nora Ney
– Se eu pudesse, eu ia cantar aquele tipo que fala mais do que canta: o rap. Adoro (risos). Fala em bunda, fala em tudo... Eu conheço porque não saio da frente da televisão. Mas tem algumas que são bem inteligentes. Ah, sabe de quem sou fã? Do Zeca Pagodinho!
Jorge Goulart – Eu cantaria canções do Francis Hime. São belíssimas.

CliqueMusic – Nora, você teve problemas com o alcoolismo...
Nora Ney
– Fui uma alcoólatra que bebia sozinha dentro de casa. Venci entrando para o AA. Por que eu bebia? Porque eu gostava de beber (risos). Adoro vinho. Bebia vinho e conhaque. Hoje, ajudo muita gente, em palestras, contando minha experiência.

CliqueMusic – Como é a relação de vocês com Deus?
Nora Ney
– Sou presbiteriana. Mas eu fui tudo (risos). Deus está sempre comigo, saí de dois enfartes, tive um câncer na bexiga, tive duas pneumonias, há pouco tempo tive uma infecção no pulmão. Tenho enfisema, e estou aqui com 78 anos. Não tenho rugas nem cabelo branco...

CliqueMusic – Você ainda é ateu, Jorge?
Jorge Goulart
– Ateu propriamente ninguém é. Eu mudei. Sou um agnóstico. Creio que tudo na vida é a crença, a bondade, é alcançar aquilo que você deseja. Tem uma história que ilustra bem esse assunto. Eu estava dando um show na Rússia, numa universidade, em Moscou, que formava apenas cientistas do Terceiro Mundo – africanos, asiáticos, sul-americanos – e tinha um rapaz, intérprete, do nosso lado, que era físico. E a Dolores Duran perguntou: "Você tem nove anos de estudo, é Cosumol (da Escola Marxista), e crê em Deus?" E ele disse: "Creio". Ela não se conformou: "Mas, como? Você não é comunista, como pode acreditar em Deus?" E ele lhe explicou: "A imagem que faço é assim: a Terra é dirigida, temos vida, temos calor, alimento por causa do sol. O sol é uma estrela de quinta grandeza e está sujeita a viver sob a estrela Hércules, que é uma estrela de segunda grandeza. E a primeira estrela? É Deus". Então, é assim. Depende da imagem que você fizer. O universo é muito bem feito. Tem que existir uma força que criou isso tudo. Creio na vida, nas pessoas. Que essa força existe, existe, tenho certeza.