O <i>Professor Pardal</i> da música brasileira

O pesquisador Omar Jubran prepara resgate das obras de Ary Barroso, Lamartine Babo e até de Jards Macalé

Julio Moura
03/09/2001
A caixa com a obra completa de Noel Rosa, lançada no ano passado pela Velas/Funarte, quem diria, foi organizada por um cientista. O paulista Omar Jubran é professor de biologia numa escola de São Paulo e, nas horas vagas, dedica-se à compilação e tratamento digital de antigas matrizes sonoras. Como o trabalho só pode ser feito entre a elaboração das aulas e a correção de centenas de provas, o elemento mais precioso nesta recuperação arqueológica é exatamente o mesmo que transforma inocentes marchinhas de carnaval em legados históricos da identidade musical brasileira: o tempo. Foram treze anos de trabalho dedicado dentro do misto de estúdio e laboratório, equipado pelo próprio professor Jubran, em seu apartamento no bairro do Sumaré, até que as quase 300 gravações da caixa de Noel ficassem prontas. Com o êxito da empreitada, Jubran debruça-se sobre a obra completa de Ary Barroso, Lamartine Babo, Braguinha e até Jards Macalé, as próximas a serem materializadas em caixas. O professor sonha em recuperar todas as 282 gravações originais (o cálculo é dele) de músicas de Ary, até o centenário do compositor, em 2003.

“Tenho cerca de quinze mil discos, entre LPs e 78 RPM” - frisa o professor que, curiosamente, não gosta de CDs. “As pesquisas são feitas em cima do meu acervo, ou de discos que consigo emprestados com colecionadores, ratos-de-sebo, como eu. Levei 13 anos para compilar o Noel porque trabalhei sozinho, recuperando cada sulco dos 78 RPM. A caixa do Noel acabou servindo como cartão de visitas. Meu objetivo agora é conseguir organizar toda a obra de Ary Barroso, em dois anos. Mas é preciso que apareça algum patrocinador, ou o trabalho pode levar décadas. Até agora, consegui recuperar apenas 28 faixas”, conta o pesquisador.

O minucioso método do professor Jubran visa aproximar a sonoridade das faixas o máximo possível da atmosfera em que a maioria das gravações foi realizada, na década de 30. Jubran não se conforma com certos maneirismos tecnológicos impostos às antigas matrizes, quando relançadas em CD.

“De uma maneira geral, não gosto do som dos CDs. Acho raso, artificial. Mas é a única forma de se reunir toda uma obra gravada em 78 RPM para a posteridade. Pior ainda quando alguns técnicos insistem em adicionar efeitos que não combinam com a sonoridade das gravações originais. Já vi um produtor orgulhar-se de ter posto (o efeito sonoro) reverber na voz do Noel. Reverber na voz do Noel? É terrível. É como colorizar um filme de Chaplin. Aquilo é feito em preto-e-branco, se botar cor perde toda a arte” - compara.

Segundo Jubran, sua intenção ao transpor uma música para o método digital é fazer com que o ouvinte possa captar a sonoridade de um 78 RPM zero quilômetro:

“As pessoas pensam que o 78 apresenta chiado por estar gasto, maltratado pelo tempo. Não é bem assim. As primeiras gravações elétricas atingiam o nível de 3 mil hertz. Para você ter uma idéia, quando o LP entrou em cena, a freqüência obtida era de 22 mil hertz. Sou um técnico auto-didata, mas me proponho a ser científico em meu trabalho. Por vezes prefiro deixar algum chiado remanescente a descaracterizar o som original dos anos 30” - defende.

O que começou como uma idiossincrasia de colecionador acabou se tornando um legado para infinitas gerações. A caixa de Noel tornou-se uma realidade tão curiosa quanto agradável até mesmo para seus alunos de biologia, na faixa dos 14 aos 16 anos.

“Quando terminei de compilar toda a caixa, em 98, comentei o fato com um amigo, dono de um sebo de discos no centro de São Paulo. A informação acabou chegando aos ouvidos do Ruy Castro, que freqüenta este mesmo sebo. Ruy escreveu um artigo inteiro sobre o assunto em sua coluna no Estado de São Paulo e, na semana seguinte, choveram telefonemas. Até que o Victor Martins, da Velas, me fez uma proposta que considerei boa e fechei com eles. Gostaria de ressaltar que o meu trabalho é de amador, mesmo. Faço questão de não receber royalties, que devem ir para os herdeiros de Noel, não para mim. Meu pagamento é ver uma garotada que nem sabia da existência de Noel interessar-se por seu universo. Se as pessoas que produzem arte no Brasil se imbuíssem de um espírito amador, a cultura do país estaria em situação menos precária. O mesmo se aplica à política, ao futebol...” - aponta.

Jubran frisa ainda que a intenção é a de sempre registrar a primeira gravação de cada música. Mesmo quando ela acontece mais de 50 anos depois de a canção ter sido composta. Foi este o caso da Marcha da Primavera, de Noel Rosa, cuja primeira versão foi registrada por Vânia Bastos e Paulo Belinatti, para um especial da Rádio Cultura de São Paulo, em 1990.

“É possível que eu mesmo produza algumas faixas para a caixa de Ary Barroso, que compôs muitas canções para teatro de revistas, jamais registradas em disco. É o que acontece com Na Grota Funda, primeira versão de No Rancho Fundo, antes de receber os versos de Lamartine Babo. Considero Noel, Ary e Lamartine os mais sólidos pilares da música brasileira. Por este motivo, minha prioridade se baseia nesta trinca. Gostaria também de fazer a caixa do Braguinha. Sou fã de suas marchinhas e versões para os grandes clássicos da música para crianças”, projeta.

Mas e o Macalé, como entra nesta história?

“Conheci o Macalé recentemente, em Porto Alegre. Fomos convidados para participar de um seminário sobre Noel Rosa. Macalé cantou maravilhosamente seus sambas, com humor afiado. O show foi gravado, em condições de ser lançado. Convidei-o a me visitar em São Paulo, e ele veio conferir meu laboratório. Uma obra como a do Macalé permanecer desconhecida e fora de catálogo é um absurdo. Como ele não tem tantas gravações, e a maioria está em vinil, é mais fácil de ser viabilizado”, acredita.

Omar Jubran possui mais um projeto à espera de condições favoráveis para vir à tona. Trata-se do livro História do Carnaval Brasileiro, onde o professor elabora uma relação entre as músicas de carnaval e a crônica política do país, desde Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, de 1889:

“A pesquisa está pronta, e inclui um CD-ROM e um CD áudio. Há coisas incríveis como a marcha Adolfito Mata-mouros, de 1945, que ironizava a adesão de Getúlio às forças do eixo. Mas o livro, por enquanto, só existe em minha casa. Estou à procura de patrocínio para tantos projetos. Pessoas me falam da Bolsa Vitae, mas não sei sequer em que categoria inscrevê-los. O mesmo se dá em relação à Lei Rouanet. Como orçar o projeto das caixas? Se encontro um disco raro num sebo, como saber quanto vale? Fica difícil programar a recuperação técnica e confecção de matrizes sem que a pesquisa esteja completa. Gostaria de encontrar um parceiro. É a preservação do maior legado da cultura brasileira que está em jogo”, afirma Jubran.

Alguém se habilita?