O eclético João Roberto Kelly

Memórias de um compositor carioca e bem-humorado

Rodrigo Faour
27/06/2000
"Esta é a Praça Onze tão querida/ Do Carnaval à própria vida/ Tudo é sempre Carnaval/ Vamos ver nessa praça a poesia/ E sempre em tom de alegria/ Fazê-la internacional". Essa é uma das muitas canções antológicas do compositor e pianista João Roberto Kelly. Rancho da Praça Onze (parceria com Chico Anysio) era o prefixo do programa Praça Onze, na TV Rio, em 1964 – um dos muitos de que Kelly participou, seja compondo a trilha, como apresentador ou produtor. Cantadas por alguns dos principais intérpretes da MPB, suas composições podem ser encontradas ainda no repertório das marchinhas carnavalescas (Cabeleira do Zezé, com Jorge Goulart; Mulata Iê Iê Iê, com Emilinha Borba; Maria Sapatão, Pacotão e Bota a Camisinha, com Chacrinha), do sambalanço (Boato e Gamação, com Elza Soares e Mormaço, com Helena de Lima, Jamelão e Angela Maria) e até da fossa (Poeira do Caminho, com Angela Maria ou Mais do que Amor, com Jamelão). Mas por onde anda João Roberto Kelly hoje? Ele continua morando no Rio e prepara um novo programa para estrear no Canal 5, da Net, a K-TV, que transmite as corridas do Jockey Club. "O programa está previsto para estrear em um mês. Naquele meu estilo, fazendo aquele gênero intimista. Terei uma hora minha, dizendo coisas, cantando e mostrando grandes canções", diz.

Ecletismo para Kelly é filosofia de vida e não opção de estilo. "Isso é inerente à minha pessoa. Não faço esforço nenhum, faria esforço, sim, para ficar num gênero só", frisa. A grande parte de sua produção é totalmente espontânea. O compositor afirma que as únicas vezes em que teve sua inspiração dirigida foi na época em que compôs para programas de televisão. "Foi uma fase que me deu muito prazer. Compus diversas trilhas de programas como Time Square, My Fair Show, Praça Onze, Noites Cariocas, Rio Dá Samba... São músicas que foram compostas com uma finalidade, como são feitas nas comédias musicais pelo mundo afora. Inspirava-me no tema do programa ou do musical, e ia fazendo, vendo aquele cenário, aquela movimentação cênica."

Kelly sente saudades dos antigos programas de TV. "Eram realizados com muito amor e a gente sempre previa uma maneira de realizar mais teatral, porque eram ao vivo. Eu tinha que contar com todas as surpresas num programa desse tipo", justifica. "O Time Square, por exemplo, tinha comédia musicada, humor, cenografia do mais alto gabarito, dançarinos, os atores cantavam, dançavam e representavam. Eram programas feitos com muito mais engenho. As facilidades técnicas de hoje suprem a necessidade de uma criatividade mais esmerada e mais forte."

Sambalanço
Além das trilhas para a TV, outro segmento importante de sua obra foi o do sambalanço, uma espécie de fusão entre o samba de gafieira e a bossa, popular na virada dos anos 50 para os 60. Kelly explica, 40 anos depois, que sambas como Boato não foram feitos com a intenção de ser algo diferente. "Era uma época em que a bossa nova vinha com uma batida muito característica dela, por sinal muito boa, mas esse samba que nós tocávamos era um pouco mais suingado, tirado do próprio piano que eu, Luiz Reis e outros tocávamos, aliado à maneira que Luiz Antônio e outros compunham samba também. Acabou que esse tipo de música não perdia características modernas da harmonia bossanovista, mas era um pouco mais quente".

Dois grandes ícones deste estilo de samba, segundo Kelly, foram Elza Soares e Miltinho, que por sinal gravaram várias músicas suas. "Aqueles discos que eles gravaram juntos fazem uma síntese de tudo que tinha sido feito de samba, dos primórdios à bossa nova", elogia, referindo-se à série de três LPs, Elza, Miltinho e Samba, que eles gravaram na Odeon, entre 1967 e 1969. O compositor lembra ainda que este gênero rotulado de sambalanço teve uma colaboração muito grande do tipo de música que se tocava nas boates cariocas de então. "Havia conjuntos como o de Ed Lincoln, Djalma Ferreira e o próprio Sérgio Mendes, que já faziam um samba moderno, com características mais percussivas. Saiu um pouco daquele clima de banquinho e violão", diz.

Falando da época do ouro da boêmia carioca, vale lembrar que João Roberto Kelly freqüentou muito as boates Drink e o Arpège. Na primeira, localizada na Av. Princesa Isabel, em Copacabana, tocava Djalma Ferreira, e logo na esquina, na Rua Gustavo Sampaio, no Leme, ficava a segunda, onde se apresentava outro monstro sagrado da época, Waldir Calmon. "Eles eram a Marlene e Emilinha do teclado", ironiza. "E Waldir, no auge da carreira, quando num de seus LPs da série Feito para Dançar que vendiam como água, gravou uma música minha que foi meu primeiro sucesso, o Samba do Telecoteco. Um pouco antes a cantora Aracy Costa havia gravado a música, mas quando ele abriu um de seus discos com ela, foi sucesso absoluto", recorda.

Cabeleira do Zezé
Ao contrário do que muita gente possa pensar, a célebre marchinha carnavalesca, Cabeleira do Zezé, lançada por Jorge Goulart, em 64, não foi feita para nenhum gay emérito do Rio, e sim para um garçom, aliás, muito metido a machão. "Cabeleira do Zezé foi uma crítica aos costumes dos cabeludos que estavam surgindo naquela época e começaram a interagir na paisagem do Rio. Foi uma sátira a um garçom que trabalhava no Leme. O cara não era gay, era até machão demais, metido a importante. Quando ouviu a música, queria me dar uma surra. O ‘Será que ele é?’ pode ser um monte de coisas: ‘Será que ele é um cara babaca?’, ‘Será que quis me bater?’. Se fosse bicha, até que seria bom", diz.

Kelly, por sinal, orgulha-se de ter musicado o primeiro grande show de travestis do Rio de Janeiro, o Les Girls. "A Rogéria, que na época era o Astolfo, maquiador da TV Rio, queria fazer um espetáculo daquele jeito que fizemos, onde eles pudessem cantar e dançar, e procurou a equipe de produção mais forte que havia na época, que fazia o programa Praça Onze, na mesma TV Rio. Éramos eu na música, Meira Guimarães no texto, Luiz Haroldo na direção e o Djalma Brasil na coreografia. Produzimos todas as músicas inéditas para o espetáculo, uma comédia musicada, que ficou muitos anos em cartaz na boate Stop, da Galeria Alaska (em Copacabana), em seguida foi para o Teatro Dulcina e depois viajou para São Paulo".