O exílio de Chico Buarque, 32 anos depois

Disco gravado na Itália pelo compositor com o maestro Ennio Morricone, hoje uma raridade, ganha edição nacional

Marco Antonio Barbosa
18/02/2003
Um dos mais bem-guardados segredos da história da MPB afinal ganha um inesperado esclarecimento, 32 anos após sua origem. Quando a gravadora Universal lançou, em 2001, a caixa Construção, contendo a (quase) totalidade da obra de Chico Buarque de 1966 a 1985, alguns fãs mais atentos se perguntaram: "E o disco com o Morricone?" Falava-se do álbum Per un Pugno di Samba, gravado em 1970 na Itália, unindo em uma parceria inusitada Chico e o compositor/arranjador Ennio Morricone. Lançado naquele mesmo ano apenas na Itália, o disco nunca tinha tido edição nacional... até agora. Na semana passada, a BMG Brasil - atual gravadora de Chico e detentora do catálogo da RCA, selo que lançou o disco em 1970 - pôs Per un Pugno di Samba nas prateleiras brasileiras pela primeira vez. Ao longo desses anos, o disco ganhou status lendário e se tornou um dos mais perseguidos itens de colecionador da música brasileira.

Chico registrou Per un Pugno di Samba durante o período em que morou na Itália. O cantor viveu em Roma por 15 meses, entre 1969 e 1970, e lá participou de vários programas de TV, além de realizar uma turnê em conjunto com Toquinho e a cantora norte-americana Josephine Baker. Antes de se encontrar com Morricone, registrou em 1969 o álbum Chico Buarque de Hollanda na Itália, que seria seu quarto LP "não-oficial" - Chico Buarque de Hollanda Volume 4, gravado já na volta ao Brasil, em 1970, tomou o posto desse LP na sua discografia oficial.

O contato de Chico com Ennio Morricone foi feito através do produtor Sergio Bardotti, grande nome do mercado fonográfico italiano da época. Morricone, àquela altura, era um dos mais renomados compositores do cinema europeu; sua associação com o cineasta Sergio Leone rendeu scores hoje clássicos, para filmes como Três Homens em Conflito (1966) e Era uma Vez no Oeste (69). (O título do disco, aliás, refere-se ao filme Por um Punhado de Dólares, ou Per un Pugno di Dollares, musicado por Morricone em 1964.) O estilo de Morricone como arranjador virou marca registrada do subgênero cinematográfico conhecido como western-spaghetti. Uma parceria inusitada para os sambas delicados e introspectivos que Chico fazia à época.

O autor de A Banda partira para a Europa auto-exilado, para evitar problemas com o governo militar brasileiro. Depois da estréia do musical Roda Viva, em 1967, o compositor passou a ser visto como "subversivo em potencial"; a tumultuada trajetória da peça musicada por Chico, proibida pela censura, pesou e muito nisso. As coisas pioraram após dezembro de 68, quando o AI-5 (Ato Institucional nº5) foi decretado; Chico chegou mesmo a passar uma noite preso no Rio de Janeiro, prestando "esclarecimentos" sobre suas canções. Menos de um mês depois, o compositor partiu para a França; oficialmente, viajaria apenas para participar do Midem, a feira internacional do disco realizada todos anos em Cannes. De lá, estabeleceu-se em Roma.

Para gravar o álbum com Morricone, Chico Buarque fez um apanhado das músicas que havia gravado até então, além de três faixas (Nicanor, Não Fala de Maria e Samba e Amor) que só apareceriam em Volume 4. O detalhe é que as canções ganharam letras em italiano, escritas pelo produtor Bardotti. As novas versões eram uma exigência de mercado; quase não se tocava nas rádios italianas músicas em outros idiomas. Roda Viva, que abria o disco, virou Rotativa; Sogno di un Carnevale era a antiga Sonho de um Carnaval; Funeral de um Lavrador tornou-se Funerale di un Contadino, e por aí foi. Os versos eram traduções praticamente literais das letras em português.

A dramaticidade de Morricone e a musicalidade até então contida de Chico nem sempre casavam muito bem. Por vezes, o novo arranjo aproximava-se, sem arriscar muito, da versão original (como em Rotativa). Outros momentos, como no desajeitado sambinha Sogno di un Carnevale ou na bossa estilizada - carregada de cordas clássicas - de Samba e Amore, soavam menos espontâneos. O melhor do álbum está nas passagens menos grandiloqüentes, como In Te ou nas adequadamente solenes Funeral di um Contadino e In Memoria di um Conjurato.

Talvez por não ter feito muito sucesso na época de seu lançamento, Per un Pugno di Samba ficou sem edição nacional. Havia também o problema do licenciamento; Chico, em sua volta ao Brasil, assinou com a Phillips (atual Universal) e a RCA teria de negociar com o selo holandês o lançamento do disco. Por aqui, pouca gente ficou sabendo do lançamento e mesmo Chico Buarque não fazia muita questão de trazer o assunto à baila. Possivelmente, para evitar as recordações do exílio, um período não muito agradável da vida do cantor, que trocou uma confortável vida de classe média alta no Rio de Janeiro por uma situação financeira bem mais apertada.

Com o passar dos anos, o álbum ganhou um vulto legendário. Cópias em vinil do disco chegavam a valer pequenas fortunas, em sebos especializados em raridades. Em uma entrevista em 1988, o próprio Chico admitia ter dificuldades de lembrar dos detalhes que envolveram a gravação - e nem mesmo ele possuía, na época, uma cópia do disco. A versão que a BMG colocou nas lojas recria fielmente a edição original, incluindo arte de capa e créditos e ficha técnica completos.