O fundamental de Baden Powell, enfim em CD

Caixa com 13 discos relembra o ápice da obra do violonista e compositor, com sua produção entre 1959 e 1972

Marco Antonio Barbosa
14/05/2003
Ele mesmo, nos anos que antecederam sua morte, queixava-se de que não havia nada de sua obra lançado em CD. Os admiradores de seu violão cristalino e do estilo único, peculiar de suas composições tiveram que enfrentar vários adiamentos. Mas, afinal, Baden Powell junta-se à crescente legião de grandes nomes da MPB que mereceram uma extensa revisão de suas carreiras na forma de luxuosas caixas múltiplas de CDs. Baden Powell, como chama-se simplesmente o box de 13 discos que a Universal Music acaba de pôr nas lojas, traz se não toda a obra do violonista fluminense, pelo menos a nata de sua carreira. São os álbuns que Baden lançou entre 1959 e 1972, mostrando a evolução e refinamento de sua arte como compositor e (insuperável) instrumentista, o ápice de sua parceria com Vinicius de Morais, o aparecimento dos "afro-sambas", e mais, muito mais.

A reunião desses CD possibilita uma compreensão da amplitude que Baden era capaz de atingir, tanto compondo quanto tocando. Sem fazer distinção entre o samba suburbano, o violão clássico, as influências dos sons afro e do candomblé e o jazz/bossa nova, Baden Powell demoliu fronteiras entre "sofisticação" e "popular". Foi um dos mais importantes nomes da gravadora Elenco, a hoje mítica usina de grandes nomes da MPB dos anos 60. Dos afro-sambas compostos com Vinicius ao sambão elegante e vigoroso da parceria com Paulo Cesar Pinheiro, a caixa - edição suntuosa, com preço sugerido de R$ 150 - resgata com elegância o cerne da obra de Baden. Falecido em 2000, o músico não chegou a ver o trato fino que deram a sua discografia.

O primeiro disco do pacote, Apresentando Baden Powell e Seu Violão (1959), hoje soa como curiosidade. Mostrava o músico, então aos 22 anos, transpondo para o violão o repertório com que se apresentava nas boates cariocas (tocando guitarra elétrica): standards nacionais (como Carinhoso) e importados. Um Baden pré-influência da bossa, mas que já despontava como compositor (com Samba Triste, escrita em 1956 com letra de Billy Blanco). O disco era a passagem para o estúdio de uma carreira de músico da noite iniciada em 1955, tocando a princípio com o grupo de Ed Lincoln e depois acompanhando cantores como Lucio Alves e Silvia Teles.

Há um abismo de criatividade nos anos que separam esta estréia de Um Violão na Madrugada (1961) e, especialmente, Baden Powell à Vontade (1963). Nestes dois álbuns, o músico assume seu estilo particular de interpretação, tornando a inflexão jazzista do primeiro disco apenas mais um ingrediente numa receita que incorporava o choro (que ouvia ao vivo em casa, quando criança, via o pai, o violonista Lino de Aquino), as invenções ancestrais de Garoto, e as lições dadas pelo professor Jayme Florence, o popular Meira - este criador de toda uma escola de violão solo legitimamente brasileiro. Em Um Violão surge o Baden sambista, compondo (Luar de Agosto, Improviso em Bossa Nova) ou recriando (Luz Negra, de Nelson Cavaquinho). ...À Vontade, primeiro disco do artista pelo selo Elenco (para onde foi levado por Aluysio de Oliveira), a criatividade desponta ainda mais, incluindo os primeiros encontros com Vinicius (Berimbau, O Astronauta, Consolação) e descobrindo novos ângulos em Tom Jobim e Dorival Caymmi.

A parceria com Vinicius iria despontar para valer no "conceitual" Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius, lançado em 1966 pelo selo independente Forma (outra das míticas gravadoras da MPB dos anos 60). O hiato de três anos na discografia de Baden se deveu à primeira das muitas temporadas que o violonista passou no exterior, permanecendo por vários meses entre 1963 e 1964 em Paris. E também pela intensa pesquisa que o músico empreendeu, em 64 e 65, nos terreiros de candomblé baianos - de onde emergiria com a cabeça virada pelo léxico religioso e pela riqueza da polirrtimia afro-baiana. A batelada de clássicos, cantada por Vinicius e o Quarteto em Cy, incluia Canto de Ossanha, Canto de Xangô e Canto de Iemanjá, além de Berimbau e Samba da Bençã. Citado muitas vezes como legítimo ponto de revolução na MPB, Os Afro-Sambas mais tarde foi renegado por Baden - que, convertido a um culto evangélico, passou a repudiar as referências ao candomblé contidas nas letras.

A caixa prossegue incluindo uma seqüência de discos com ênfase no instrumental: Tempo Feliz (1966), banhado no samba-jazz e mostrando um Baden caprichando no improviso, e Ao Vivo no Teatro Santa Rosa (67), no qual o músico ia sem escalas de Bach ao terreiro de macumba. E, afinal, o clássico Baden Powell Swings with Jimmy Pratt (1967), disco que consolidou o nome de Baden como grande expoente do violão jazzistico mundo afora, gravado no Rio com o baterista americano Pratt e o maestro Moacir Santos. Seguem-se mais um disco ao vivo (Show/Recital, de 1968, que tinha um lado instrumental e outro de canções populares) e 27 Horas de Estúdio (1969) - autêntico tour de force no qual Baden enfiava de tudo no mesmo saco, violão erudito, samba, influências nordestinas, jazz e bossa nova.

Além disso, há a redescoberta da riqueza de As Músicas de Baden Powell & Paulo Cesar Pinheiro (1970). O grande parceiro de Baden (fora Vinicius, claro) compôs com ele coisas como Lapinha, Aviso aos Navegantes, Quaquaraquá e Vou Deitar e Rolar, tornadas famosas nas vozes de Elis Regina e Elizeth Cardoso. Aqui, num registro mais intimista, quem canta são os Cantores da Lapinha, codinome para o quarteto formado por Ruy e Magro (do MPB-4) e Cynara e Cyva (do Quarteto em Cy).

Além da produção de Baden para a então gravadora Phillips, que englobaria também os selos Elenco e Forma, a caixa traz três discos feitos pelo violonista para o mercado exterior. O Som de Baden Powell e Estudos, gravados respectivamente em 1968 e 1971, mostram basicamente o músico revendo seu repertório, com nítida inflexão jazzistica. É De Lei, o último álbum do pacote (1972), foi feito para a França e incluia como destaque um punhado de inéditas (Canto, Sentimentos, Se Você Pergunta Nunca Vai Saber e Conversa Comigo Mesmo).