O mito chega aos 70 anos

João Gilberto e suas suaves revoluções na MPB

Marco Antonio Barbosa
08/06/2001
Não é todo dia que uma lenda viva faz aniversário - especialmente o 70º aniversário. João Gilberto Prado Pereira de Oliveira completa neste dia 10 de junho 70 anos: sete décadas do músico que cristalizou, na batida de seu violão e em seu canto gentil, o paradigma da bossa nova. E que, por tabela, mudou os rumos da música popular brasileira na segunda metade do século XX, transformando o samba, influenciando sucessivas gerações posteriores, popularizando a bossa nova pelo mundo, sendo copiado, e enfim tornando-se... uma lenda viva.

Se a bossa nova virou plataforma de toda uma linha evolutiva da MPB a partir do final dos anos 50, então João Gilberto é o símbolo vivo dessa evolução. Desconstruindo o samba tradicional e escapando do clichê do "cantor gutural" (e principalmente atingindo uma simbiose perfeita entre seu violão sincopado e sua voz), João deu vida às idéias do jovem Tom Jobim - transformando suas canções em algo que ainda não se tinha ouvido. A pedra filosofal da bossa nova (o álbum Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, 1958) entrou para a história por trazer os primeiros registros da revolucionária junção violão/voz de João - em Chega de Saudade e Outra Vez. E nos três LPs que gravaria em 59, 60 e 61, o cantor (um "baiano bossa nova", como o definiu Tom Jobim) dava o formato definitivo à bossa, fazendo um "estrago" sem par na formação musical de gente como Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo e Tom Zé. "João Gilberto já estreava mestre e líder de um movimento que viraria de pernas para o ar as questões harmônica, rítmica, melódica e poética da chamada linha evolutiva da MPB", como definiu Tárik de Souza, editor de Cliquemusic.

Lançou a música brasileira ao mundo, com seus trabalhos com Stan Getz nos anos 60. Irmanou-se à turma dos Novos Baianos, assumindo a "paternidade espiritual" de sua geração. Tocou no mundo inteiro, e depois retornou ao Brasil para mais uma vez congregar-se com seus discípulos - Caetano, Gil, Bethânia. Deixou sua marca tanto no samba-canção da era do rádio quanto na canção pop de Lobão. Ultrapassou em muito as limitações da bossa nova, chegando mesmo a renegar o estilo ("O que eu canto é samba", disse mais de uma vez). E mesmo com toda sua fama de "difícil", implicante, arredio, é com certeza o nome mais cultuado da história de nossa música popular.

Em 2001, 42 anos depois de ter inventado a bossa nova, João Gilberto ainda está na moda. Venceu em fevereiro um Grammy (o prêmio máximo da indústria musical dos EUA) na categoria "melhor álbum de world music" por seu último álbum, João Voz e Violão. Vai se apresentar no Festival de Jazz de Montreux, Suíça (em uma das vezes em que participou do evento, em 1985, deixou um impecável álbum ao vivo, Live at the 19th Montreux Jazz Festival). Pelo menos dois livros sobre o cantor estão para ser lançados: A Poética do Som, de Edinha Diniz, e outro, ainda sem título, preparado por Luiz Galvão (ex-Novos Baianos).

O que ouvir de João
Por incrível que pareça, a trilogia básica de álbuns nos quais João Gilberto definiu a bossa nova não está disponível em CD. Chega de Saudade (59), O Amor, o Sorriso e a Flor (60) e João Gilberto (61) foram compilados em um único CD (intitulado O Mito) em 1992 pela gravadora EMI - detentora do catálogo da antiga Odeon, que lançou as edições originais dos LPs. O Mito acabou justificando o próprio título, visto que tornou-se um disco-lenda: o próprio João Gilberto entrou na justiça contra a EMI, obrigando a gravadora a retirar os CDs das lojas. Motivo: a ordem original das faixas foi mexida, as músicas foram remixadas e ainda inventou-se um medley (juntando as metades A Felicidade e O Nosso Amor em uma só faixa), tudo isso sem sequer consultar o cantor. A EMI, que posteriormente pretendia relançar os três álbuns em seus formatos originais, está impedida de mexer no material.

É pena, pois se há um CD que pode se chamar de "seminal" é O Mito. Todo o refinamento estético que JG trouxe ao samba está contido nas 38 faixas do álbum. Dos primeiros clássicos de Tom Jobim (Desafinado, Chega de Saudade, Samba de Uma Nota Só, Corcovado, Insensatez, Amor em Paz) a acenos gentis à MPB pré-bossanovística (Trem de Ferro, de Lauro Maia, É Luxo Só, de Ary Barroso e Luiz Peixoto, ou Morena Boca de Ouro, também de Barroso), passando por suas raras composições próprias (Oba-la-la, Bim-bom), João imprimia sua elegância em três álbuns que hoje têm o status de um verdadeiro manifesto sonoro.

Quem deseja conhecer a simbiose entre a MPB e o jazz tramada por João nos anos 60 deve procurar Getz/Gilberto (1964), mega-sucesso de vendas só batido pelos Beatles. O disco trazia a primeira versão em inglês para Garota de Ipanema - que, como The Girl From Ipanema, transformou-se numa das canções mais executadas da história. A mescla do saxofone de Getz (da escola cool jazz fundada por Miles Davis) com a batida do violão de João marcou época e apresentou a moderna música brasileira ao mundo (aposentando Carmem Miranda e seus cachos de banana).

Registro da maturidade iluminada do cantor, Amoroso, de 1976, é um dos discos favoritos de muita gente. No álbum, João mostra sua universalidade ao recriar do bolerão clássico (Besame Mucho) à canção romântica italiana (Estate) sem perder a pose. Releituras de Tom Jobim (Triste, Zingaro, Caminhos Cruzados, Wave) e até dos irmãos Gershwin (S'Wonderful) completam o panorama, no qual voz e violão de JG se casam com os arranjos de cordas de Claus Ogerman.

Para se ter idéia da "suave potência" da performance de João no palco, o melhor é partir para o já citado Live at the 19th Montreux Jazz Festival, registrado só na voz e violão. Clássicos da bossa nova e relíquias sambísticas (Pra Que Discutir Com Madame?, Adeus América, Preconceito) estão no repertório do disco, lançcado originalmente em 1986 como um LP duplo e transposto para CD (também duplo) em 1993.