O samba perde o militante e o ourives

João Nogueira pegou a música dos bambas do morro e a ela aplicou a linguagem do asfalto

Tárik de Souza
05/06/2000
Ele costumava apelidar-se "sambista de calçada", uma forma de distinguir-se dos bambas de morro de quem sua música era aparentada, embora com o tempero urbano pós-culturalista. Apesar de ter gravado, em 1968, Espera, Ó Nega, com o conjunto Nosso Samba e dois anos depois Elizeth Cardoso registrar sua Corrente de Aço, o lançamento oficial de João Nogueira deu-se no pau de sebo (disco onde a gravadora testa vários artistas para ver qual emplaca) Quem Samba Fica (EMI), de 1971, produzido pelo radialista Adelzon Alves.

Carioca do Méier, nascido em 1941, filho de um violonista que chegou a atuar profissionalmente, Nogueira debutou em ótima companhia, ao lado do lendário Aniceto do Império (a maior patente do partido alto), Roberto Ribeiro, Nadinho da Ilha, Haroldo Melodia e Baianinho, entre outros. Suas duas faixas – Mulher Valente é Minha Mãe e O Homem de um Braço Só (esta, uma homenagem ao bicheiro Natal, que comandava a Portela) – destacavam-se. Cantando ralentado, segurando a divisão rítmica, o novato soava como um sambista que tinha ouvido a bossa harmonizada de João Gilberto, mas seguia nele a admiração mútua pelo sincopado de Geraldo Pereira.

Nogueira projetou-se – ao lado de Roberto Ribeiro e do trio feminino ABC, Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes – na emergência do samba dos anos 70, prefaciada pelo estouro de Martinho da Vila no final da década anterior com Casa de Bamba, Pequeno Burguês e outras remodelagens do partido alto e samba enredo. Além do cantor de estilo muito particular calcado na ginga mas apto a vôos maiores, Nogueira foi um grande compositor com um leque diversificado de habilidades. Assinando sozinho ou com parceiros como o mais assíduo Paulo César Pinheiro, além de Zé Catimba, Claudio Jorge, Eugênio Monteiro, Nei Lopes, Geraldo Vespar, Mauricío Tapajós, Paulo Cesar Feital e a irmã Gisa Nogueira, ele percorreu quase todas as subdivisões do gênero, sem contar algumas canções mais lentas, maxixes e incursões no universo rural.

Os mais variados tipos de samba
É possível ouvi-lo tanto nos sambas nostálgicos seresteiros (E Lá Vou Eu, Bares da Cidade, Braço de Boneca, Chorando Pelos Dedos, Pra Fugir Nunca Mais) quanto nos arrasta-povo (Meu Canto Sem Paz, Do Jeito Que o Rei Mandou, Entenda a Rosa, Arquibundo). Dos afro-sambas (Mineira , Lá de Angola), aos cadenciados tradicionais (Sonho de Bamba, Samba da Bandola), mais diversos formatos de samba enredo (Eu Sei Portela, Rocinha, Xingú, Rei Senhor, Rei Zumbi, Rei Nagô, As Forças da Natureza), samba de gafeira (Baile no Elite, citado no ultimo disco do Planet Hemp) e incontáveis partidos-altos (Clube do Samba, Bafo de Boca, Espere,Ó Nega, Alô Madureira).

Mas o interprete de voz sombreada espalhou-se mesmo foi no picote do ritmo que o filiava à escola de Wilson (Batista), Geraldo (Pereira) e Noel (Rosa) como ele declarou no título de uma música e um LP ("eu bem que sabia que o samba que eu tinha na mente/ era diferente/ com jeito de Wilson Geraldo e Noel") celebrando a trinca de influências. Dessa vertente, entre vários outros são Eu, Hein Rosa, Pimenta no Vatapá, Convênio com Cupido, Nó na Madeira, Batendo a Porta, Vem Quem Tem, Vem Que Não Tem.

Do recorte bem humorado (Se Segura, Segurança, Moda da Barriga, onde ele cita de Silvio Santos até Tim Maia e o roqueiro Carlos Imperial, Apitaço, a respeito do entrevero da maconha na praia de Ipanema) ao épico (Súplica, O Poder da Criação, Minha Missão, Um Ser de Luz, Espelho, num comovido retrato do pai) e a crítica social (Jornal Cantado, Trabalhadores do Brasil, Eu Não Falo Gringo, Vovô Sobral, Canto do Trabalhador), acentuada no precursor Beto Navalha ("Não se vive direito/ com ódio no peito e armas na mão") além de uma cutucada no establishment baiano (Ioiô) e uma vela acesa à política das 200 milhas territoriais da época da ditadura (Das Duzentas Pra Lá), Nogueira deixa uma obra vasta e rica. Filiado à corrente da raiz, presidente do Clube do Samba ele defendeu e praticou seu credo musical até a ultima nota. O gênero perde ao mesmo tempo um ourives de alto refino e um militante de rua. Ou melhor, de calçada.