O sertão vira música com o Cordel do Fogo Encantado

Banda do interior de Pernambuco corre o país com sua música sem rótulos, conquista fãs ilustres, vende quase cinco mil discos e se apresenta na Europa em julho

Silvio Essinger
30/04/2001
Da cidade de Arcoverde, que fica em pleno sertão pernambucano, a 260 km de Recife, vem a mais animadora novidade da música pernambucana: o Cordel do Fogo Encantado, que no momento corre o Brasil num esquema absolutamente independente, lotando teatros com o repertório de seu primeiro e homônimo disco amostras de 30s. Em julho, por sinal, a banda faz sua primeira incursão pela Europa, onde tem agendadas apresentações no festival Sphynx, na Bélgica.

A trajetória do Cordel é parecida com a de Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio. Mas com um detalhe: apesar de estar se beneficiando das portas abertas pelo mangue beat, eles pouco têm a ver com o movimento. "O mangue surgiu no litoral, no caos urbano de Recife, e só chegou até a Zona da Mata", conta o percussionista Emerson, 21 anos de idade, que só tinha 14 quando foram lançados os discos inaugurais do movimento, Da Lama ao Caos amostras de 30s (da Nação) e Samba Esquema Noise amostras de 30s (do Mundo). "A gente veio para somar ao mangue, pois ainda não tinha saído nada novo do sertão", explica.

Emerson, que considera Chico Science parte de uma linhagem de guerreiros nordestinos que vem de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, acredita que o exemplo do mangue permanece no novo milênio: "Tanto em Recife quanto no sertão tem muita gente fazendo som hoje em dia." E o Cordel do Fogo Encantado chega a este cenário com um trabalho estruturado na assimilação de toda a tradição musical do sertão – o toré indígena (herança da tribo Xucuru), o samba de coco, o reisado, a embolada e a música dos cantadores – e da poesia popular de nomes como Chico Pedrosa, Manoel Filó, Manoel Chadu, Inácio da Catingueira e Zé da Luz.

Origens teatrais
A banda foi formada em 1997 por Emerson, o vocalista, pandeirista e letrista Lirinha (que desde os nove anos de idade vem participando de encontros de poetas populares nordestinos) e o violonista e vocalista Clayton Barros. Inicialmente, o Cordel era um espetáculo teatral, que percorreu todo o interior de Pernambuco. Em 99, Lirinha e Clayton foram tentar a sorte em Recife, onde o Cordel estreou participando do Rec-Beat, festival organizado anualmente pelo produtor Antonio Gutierrez, o Gutie, durante os quatro dias de Carnaval.

Por indicação da banda Mundo Livre S/A, os músicos conheceram os percussionistas Nêgo Henrique e Rafa Almeida, que são do morro da Conceição, na periferia de Recife. Eles trouxeram para a banda a influência musical africana do candomblé, que era reprimida no sertão. Mais tarde, Emerson seria reintegrado ao Cordel, que, depois de passar por adaptações (tornou-se mais banda e um pouco menos espetáculo teatral) começou a sua caminhada pelo Brasil.

Com idades entre 18 e 24 anos, os músicos entraram em estúdio em setembro do ano passado para gravar seu primeiro CD, pelo selo RecBeat de Gutie, com produção do ilustre conterrâneo Naná Vasconcelos. Com quatro percussões e apenas um instrumento harmônico, a banda foi um prato cheio para Naná. "Ele não modificou nada no nosso som, apenas acrescentou", diz Lirinha. Lançado em fevereiro passado, o disco já vendeu até agora, só no boca-a-boca, quase cinco mil cópias. "Em duas semanas, os primeiros mil CDs tinham se acabado. Semana passada, só em São Paulo, vendemos 400", conta Gutie. Aliás, quem quiser comprar Cordel do Fogo Encantado pode fazê-lo através do e-mail cordel@hotlink.com.br ou pela homepage www.recbeat.com.br.

Em suas andanças de Norte a Sul do país, o Cordel chamou a atenção de muitas pessoas. Entre elas, a atriz Leandra Leal acabou virando fã. Junto com as amigas Fernanda Boechat e Lívia Falcão, resolveu produzir dois shows do Cordel, ontem e hoje, no Teatro Rival (RJ) da mãe, Ângela Leal. "Um amigo me mostrou o CD e eu fui ver o show deles. Gostei muito dessa mistura de poesia e batucada e fiquei com vontade de revê-los", conta Leandra.

Música em construção
Lirinha tenta explicar a razão do sucesso do Cordel: "A gente procura fazer uma música mais inovadora e menos celebratória." Emerson vai adiante: "A nossa música ainda está em construção, não cabe em rótulos, não é parecida com nada." Ele rejeita as influências que normalmente são associadas à banda. "O Mestre Ambrósio é mais música do litoral e da Zona da Mata. Já o Quinteto Violado bebeu nas mesmas fontes que a gente, só que tem uma visão mais armorial, presa às tradições."

Por sinal, depois do trabalho com Naná Vasconcelos, a banda foi se abrindo cada vez mais para a tecnologia. Clayton já usa um violão cheio de efeitos eletrônicos e, em breve, o Cordel carregará para o palco um sampler. "Naná sempre diz que a tradição limita a criatividade do músico. Com um sampler na mão vão surgir coisas", espera Emerson. Mas ele acredita que, mesmo sem a tecnologia, a música que o Cordel faz já pode ser considerada futurista. "Tem uma frase de Chico Science da qual a gente gosta muito: ‘Modernizar o passado é uma evolução musical’", cita.

Presença forte na música do Cordel, o sertão também está representado em suas letras. "Elas falam do que se vive na região da gente. De como é importante chover para modificar a vida", diz Lirinha, chamando a atenção para a herança dos profetas e dos conselheiros, "a anunciação do fim da escuridão". Na música Chover (Ou Invocação Para um Dia Líquido), está dito: "Meu povo não vá simbora/ Pela Itapemirim/ Pois mesmo perto do fim/ Nosso sertão tem melhora." Os músicos, de qualquer forma, há muito caíram na estrada. No exterior, eles sabem que vão contar mais com o groove do que com os elementos teatrais. E ao vivo, a pancada do Cordel pode ser mais forte que muito rock’n roll. "A gente chegou falando forte e pisando firme!", anima-se Lirinha.