O tesouro de Jacob do Bandolim em embalagem de luxo

Finalmente sai uma caixa com precioso material do bandolinista em sua época da RCA-Victor, suprindo uma lacuna há muito sentida pelos amantes do choro; show de lançamento terá presença dos veteranos do Época de Ouro, da filha e da viúva de Jacob

Nana Vaz de Castro
01/12/2000
Na tradição da música brasileira, adicionar um instrumento ao nome artístico nem sempre quer dizer o óbvio. Nelson Cavaquinho, por exemplo, tocava violão. Já Paulinho da Viola toca cavaquinho. Mas Jacob e o Bandolim são indissociáveis. Foi o músico que mudou a história desse instrumento no Brasil, fazendo com que o bandolim por aqui divida-se em antes de Jacob e depois de Jacob.

Por isso merece destaque a caixa lançada pela BMG, que já está nas lojas, com 56 faixas (três CDs) do período áureo da carreira de Jacob. É a primeira vez que um instrumentista brasileiro ganha de uma gravadora uma caixa dedicada a sua obra. Até hoje, só cantores desfrutavam desse prestígio. O lançamento traz ainda um encarte com textos de João Máximo e do cavaquinista Henrique Cazes, responsável pela seleção do repertório. O lançamento oficial, dia 10 de dezembro, das 18h às 22h, no Espírito do Chopp (Rio), terá, é claro, roda de choro, com a presença dos integrantes do Época de Ouro que tocaram com Jacob (Dino 7 Cordas, César Faria, Carlinhos e Jorginho do Pandeiro) e do Conjunto Sarau. Também estão confirmadas a presença da viúva, d. Adylia, e da filha do bandolinista, Elena Bittencourt. A homenagem inclui ainda uma exposição de fotos na Cobal do Humaitá (onde fica o Espírito do Chopp) e a entrega de uma placa de prata comemorativa a d. Adylia, representando o marido.

Unanimemente aclamado como um dos grandes músicos da história brasileira (leia depoimentos de bandolinistas), Jacob utilizou seu espírito empreendedor para resgatar a tradição do choro nos anos 50 e 60, em uma época em que o gênero andava esquecido, encoberto pelo sucesso da bossa nova e do rock. Não por acaso, o conjunto que fundou ganhou o nome saudosista de Época de Ouro. Sobre a bossa nova, Jacob dizia que seus intérpretes não a sabiam tocar da maneira certa. Disse a Tom Jobim que todas as gravações de Chega de Saudade estavam "erradas", e pediu a partitura original. Para provar sua teoria, gravou a versão "certa" em Jacob Revive Sambas para Você Cantar, de 63, e no célebre show do teatro João Caetano, em 68.

Violino improvisado
O bandolim foi desde sempre uma espécie de necessidade para Jacob Pick Bittencourt (1918-1969). Na infância, sua atração pela música se deu por meio de um vizinho cego que tocava violino. Conseguiu um instrumento emprestado, mas não se adaptou à técnica do arco. Resultado: usava os grampos de cabelo da mãe para "pinçar" as cordas do pobre violino. Até que um dia alguém lhe disse que já existia um instrumento daquele jeito, e Jacob ganhou um bandolim modelo napolitano.

Apesar de tocar profissionalmente desde a adolescência, Jacob não dependeu exclusivamente da música para sobreviver na maior parte da sua vida. Por influência do amigo e conselheiro Donga (autor do samba Pelo Telefone), arranjou um emprego público, que lhe deu estabilidade financeira para sustentar a família. Foi Donga quem praticamente obrigou Jacob a prestar um concurso público e arranjar um emprego fixo. Mais tarde, Jacob faria a mesma coisa com César Faria, Carlinhos e Déo Rian. Com estabilidade financeira (quando morreu era escrivão da Polícia Federal), Jacob podia fazer sua música sem muitas concessões, gravava o que queria, sem pressa, sem opiniões não solicitadas de produtores ou gravadoras.

Concessão realmente não era palavra usual na maneira de pensar e agir de Jacob do Bandolim. De temperamento forte e severo, era exigente e não admitia menos que o máximo. "Era um líder nato", diz Déo Rian, 26 anos mais jovem, apontado por Jacob como seu sucessor. Sob a liderança de Jacob, o choro passou por uma fase de recuperação e renovação, angariando novos ouvintes, novos admiradores, novos instrumentistas, novos compositores. Centralizador, gostava de se cercar de talentos. Organizava saraus freqüentemente em sua casa, em Jacarepaguá, que originaram até um disco, Os Saraus do Jacob. Além disso, foi o responsável pelo descobrimento da divina Elizeth Cardoso, levada por ele para o meio artístico profissional.

Pesquisador, compositor, luthier e intérprete
A importância de Jacob passa por suas várias facetas: pesquisador (seu famoso e valioso acervo foi doado depois de sua morte ao Museu da Imagem e do Som – MIS) que jogou nova luz sobre a obra de autores como Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros; compositor de choros, valsas, polcas, maxixes, sambas; luthier amador, que, segundo alguns, desenvolveu um modelo novo de bandolim, ampliando sua sonoridade (mas, segundo Joel Nascimento, o "modelo Jacob" nada mais era do que uma recriação da guitarra portuguesa), e criador de um estranho instrumento, o vibraplex; e, acima de tudo, intérprete inigualável.

"As interpretações do Jacob são referência para todos os instrumentistas. Ingênuo e Lamentos (ambas de Pixinguinha), por exemplo, do disco Vibrações: ninguém mais toca de outro jeito. A versão dele virou base", diz Marcílio Lopes, bandolinista do conjunto Água de Moringa. Ronaldo do Bandolim, que integra o Época de Ouro de 1976, faz coro: "Veja o Odeon do Nazareth, por exemplo. Não tem jeito, todo mundo usa a interpretação do Jacob como guia".

O desenvolvimento da técnica interpretativa tão particular e tão marcante de Jacob é quase todo fruto de seu próprio esforço e talento. Até 1949, época em que já era razoavelmente conhecido por sua atuação em emissoras de rádio, só tocou de ouvido. Quando sentiu necessidade de aprofundar seu conhecimento teórico e técnico, e estudar música sistematicamente, já havia desenvolvido um estilo, baseado principalmente em sua vivência musical urbana, dos chorões da Lapa, onde nasceu e foi criado.

Duas notas que valem por 500
Os músicos são unânimes em dizer que Jacob não tinha a maior agilidade técnica do mundo. Antes dele, o maior nome do bandolim era Luperce Miranda, que tocava com todos os grandes nomes do rádio e era extremamente ágil. "Luperce tocava 500 notas enquanto Jacob tocava duas, e emocionava muito mais", exemplifica Joel Nascimento, um dos maiores bandolinistas em atividade hoje.

Admirado por todos os músicos de sua geração e das posteriores, Jacob foi "muso" inspirador de diversos compositores. Entre as composições dedicadas a ele, destaca-se a Suíte Retratos, de 1963, uma das obras-primas de Radamés Gnattali. Com movimentos intitulados Pixinguinha (choro), Chiquinha Gonzaga (corta-jaca), Anacleto de Medeiros (schottisch) e Ernesto Nazareth (valsa), a suíte foi escrita para orquestra de cordas, regional e bandolim solista, e possui uma gravação antológica de Jacob. Foi também por causa dessa suíte que Joel Nascimento resolveu levar a sério o estudo do bandolim.

Há até mesmo uma carta de Jacob a Radamés reproduzida na pequena biografia escrita pela pesquisadora Ermelinda Paz em que o bandolinista agradece ao maestro por ter lhe obrigado a estudar com tanto afinco seu então já consagrado bandolim. E aponta efeitos colaterais, como o vocabulário do pandeirista do conjunto, que não fala mais em "paradas", e sim em "fermatas".

Outras homenagens foram feitas por Paulinho da Viola (o choro Inesquecível), pelo filho Sérgio Bittencourt (Naquela Mesa), pelo chorão Avena de Castro (Evocação de Jacob), pelo bandolinista Armandinho (O Bandolim de Jacob, com Moraes Moreira, e Lembrando Jacob, com Luís Brasil), por Sebastião Tapajós e Maurício Einhorn (Jacobiano) e até Taiguara (Tributo a Jacob do Bandolim).

Jacob morreu cedo, aos 51 anos, na sexta-feira 13 de agosto de 1969, de infarto fulminante, ao voltar da casa de Pixinguinha. Seu figura rigorosa e rígida contrastam com a sensibilidade extrema que aflora de sua música, felizmente preservada em variadas gravações. Deixou um legado cuja importância transcende os limites do instrumento (bandolim), de gênero (choro) e do Brasil (dois CDs foram lançados nos Estados Unidos, graças à iniciativa independente do bandolinista americano David Grismann). Mas principalmente, transcende sua época. Trinta e um anos depois de sua morte, sua obra é celebrada e se faz presente, sempre.

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