Papo com Milton Nascimento na Alemanha

Em plena turnê européia, o compositor conversa sobre o passado e o presente de sua música

Eliane Fernandes
01/09/2004
De julho a agosto de 2004 Milton Nascimento se encontrou em turnê pela Europa apresentando seu CD Pietá ouvir 30s e o álbum duplo Maria Maria e O Último Trem, lançado pelo seu selo Nascimento no Brasil e, na Europa, pelo selo inglês Far Out Recordings. Marina Machado, que participou de Pietá nas faixas Casa Aberta, Imagem e Semelhança e Vozes do Vento, o acompanhou durante a turnê.

Em uma entrevista à Cliquemusic em Hamburgo, na Alemanha, Milton nos contou a razão de ter lançado Maria Maria e O Último Trem através de seu selo Nascimento: "A gente fez estas músicas para o Grupo Corpo e elas ficaram de lado porque as companhias de disco não se interessavam por estas obras. Se eu as lançasse naquela época seria um desperdício, pois as gravadoras não fariam propaganda, não ajudariam em nada e ainda cobrariam de mim este lançamento. Agora tenho meu próprio selo, o selo Nascimento, e pretendo lançar vários trabalhos de artistas diferentes. A primeira idéia que tivemos foi lançar as trilhas de teatro, balé e cinema. Maria Maria e O Último Trem foi o primeiro lançamento do meu selo".

Milton diz ser bom o fato de vários artistas estarem criando seus próprios selos. Segundo ele, as gravadoras não estão mais dando certo: "Assim o artista tem a possibilidade de fazer o trabalho que ele quer, na hora que ele quer, com uma liberdade artística maior". O cantor acrescenta que só teve dois produtores: "Um, que eu adoro e entende muito de voz, que é o Guto Graça Mello. E agora no Pietá o pessoal da Warner perguntou se podíamos colocar o Tom Capone pra trabalhar conosco. Primeiro conversei com Guto Graça Mello e perguntei a ele se ele estava de acordo. Nós três nos unimos e as idéias todas combinavam muito, o que gerou um trabalho sensacional. Sem pesquisarmos nada, aconteceu espontaneamente que o Tom Capone ficou com a parte de banda e de orquestra e o Guto com a parte de voz. E saiu um trabalho muito legal".

Falando um pouco de política, Milton Nascimento diz estar satisfeito com o trabalho de seu amigo e Ministro da Cultura Gilberto Gil. Ele conta: "Pra dizer a verdade, o Gil pra mim é um dos maiores políticos que eu conheço. Nesses dois anos que a gente trabalhou no projeto Gil & Milton o assunto só era política. O negócio dele é política mesmo. Ao entrar no Ministério da Cultura ele teve primeiro que limpar muita coisa. Aliás, qualquer pessoa que mexe com alguma coisa do governo no Brasil é assim. Ela tem primeiro que limpar pelo menos 500 e tantos anos, desde que os portugueses vieram ao Brasil. É bem difícil, mas acho que todo mundo está gostando do trabalho do Gil. Por enquanto não precisei trocar idéias, mas está muito bom e eu confiei muito nele".

A possível reunião do Clube da Esquina parece ser uma pergunta que Milton escuta muitas vezes: "Quando saiu o Pietá todo mundo perguntava se era o Clube da Esquina n°3. E eu sempre respondia: 'Não, este é o N° 4.', diz o cantor, rindo. Segundo ele, o 3° Clube da Esquina seria Angelus. Ele afirma: "É um disco que adoro e que foi feito realmente em um estilo de amizade, onde juntamos idéias. E foi uma coisa tão impressionante, porque a gente começou a gravar em uma fazenda lá em Minas Gerais, em um lugarzinho perto de Belo Horizonte. Foi até engraçado porque a gente gravava até às três da tarde e tínhamos que parar pra mandar energia, pra poderem tirar leite de vaca. Quando eles acabavam a gente podia continuar. Este trabalho começou em uma fazendinha e acabou em Nova Iorque".

Para Milton o 4° Clube da Esquina é Pietá, que também reuniu muita gente conhecida e muita gente nova. Mas ele acrescenta que mais um Clube da Esquina não está planejado por enquanto. Ele pretende primeiro lançar suas trilhas e também lançar dois discos de outros músicos, mas que ainda é segredo, devido ao ciúme das mulheres cantoras, um problema que ele tem desde o início. Milton diz rindo: "Mulher quando ouve umas coisas é um problema... Nós estávamos conversando sobre isso lá no quarto do hotel e eu contava que quando eu dava uma música pra Elis, vinham as outras cantoras reclamar: ‘Pô, você só faz música pra ela...’ Aí dava uma música pra outra e as outras vinham de novo. A única que nunca brigou comigo foi a Elis, justamente a que tinha mais fama de brigona. E eu sempre fiz todas as músicas pra ela. Eu nem pensava em cantar. Queria a música pra ela".

Perguntando a Milton sobre o verdadeiro significado de Minas Gerais em sua vida, ele respondeu: "Se eu tivesse sido criado em outro lugar seria muito diferente, porque Minas tem uma tradição de harmonia. A harmonia só os mineiros sabem fazer e de modo diferente das coisas do Rio. Não quero dizer que são melhores. O Rio deu a Bossa Nova pra gente, que é um presente dos deuses. A harmonia em Minas Gerais é uma coisa muito séria, mas muito séria mesmo. E em termos de África os negros que foram para Minas chamavam negros Mina, e não era por causa de Minas. Eles se chamavam negros Mina mesmo, devido à sua procedência".

O mineiro prossegue: "Então a gente tem um ritmo completamente diferente, com todos os tipos, até o tipo de dança, que é uma coisa misturada com a cultura indígena, com a cultura branca, como o cateretê, a catira, estas coisas todas, que as pessoas dançam e só o barulho dos pés ou sapatos no chão já é uma coisa. E durante a minha juventude tinha o trem. Só o barulho do trem já tem o seu ritmo. Outra coisa muito importante pra mim foi ouvir os corais. Eu nunca cantei num coral, mas sempre ouvi muito. Ainda tem o eco das montanhas, porque as pessoas dizem que os mineiros sobem nas montanhas pra tentar ver o mar, mas nós temos o mar de montanhas. Eu ficava deliciado em subir em um morro, gritar e ouvir minha voz, sumindo várias vezes naquele mar de montanhas. Então Minas foi minha comida. Eu posso fazer qualquer coisa diferente em qualquer lugar, qualquer tipo de música, que sempre tem Minas dentro".

O difícil é deixar Milton Nascimento ir embora, um anjo da música brasileira. A vontade era de permanecer ali, e como Marina Machado também declarou: "Uma vez com Milton e a gente nunca mais quer sair de seu lado".