Para ouvir o poeta maior

Caixa com 27 CDs monta amplo panorama da obra musical de Vinicius de Moraes

João Máximo
07/07/2001
Vinte e um anos depois de sua partida, Vinicius de Moraes continua abrindo portas. Ou operando milagres. No caso, o de fazer com que nossas gravadoras tratem com inteligência, amor e respeito os artistas cujas obras dormem nas prateleiras mofadas de seus arquivos. Como Dizia o Poeta, caixa de 27 CDs, que será lançada dia 9, com uma festa para convidados no Mistura Fina (RJ), se está longe de merecer a classificação de obra completa, não é por culpa do produtor Marcelo Fróes ou da Universal. A idéia original de Luciana de Moraes, à frente da VN Produções, era de guardar na caixa, como um tesouro, todo o Vinicius, o que provavelmente somaria à coleção algo em torno de 25 CDs. Mas o que mais inviabilizou a idéia foram as gravadoras que negaram autorização para que seus discos fossem incluídos. Vinicius realmente fez milagre. Não há dúvida de que o aspecto comercial, se pesou em Como Dizia o Poeta, pesou pouco. Quantos, mesmo entre os mais apaixonados fãs de Vinicius, se disporão a pagar R$ 530 por uma obra que nem completa é? Projetos desse porte, nos EUA e na Europa, custam até mais, só que para outros poderes aquisitivos. O que torna ainda mais louvável o fato de a Universal ter abraçado a causa de Luciana.

Uma caixa como esta vem reafirmar o que Vinicius foi, e ainda é, principalmente no universo da canção: um letrista a serviço da música e não um poeta a se servir da música (multiplicam-se entre nós os candidatos a poeta que vêem na música popular o veículo para sua poesia, papel antes desempenhado pelo livro). Alguns CDs da caixa são reedições de discos em que Vinicius recita poemas seus, casos de Vinicius: Poesia e Canção, volumes 1 e 2 (Forma, 1966) e Vinicius em Portugal (Festa, 1969), enquanto outros incluem recitativos entre números musicais. Pois esta coexistência, e ao mesmo tempo contraste, de poesia falada com poesia cantada, promovidos por Como Dizia o Poeta, é justamente o que vai ressaltar uma das mais importantes facetas de Vinicius: quando escreve poesia, ele é um, e quando faz letra, é outro.

Letrista simples e muito musical
Tematicamente, o mesmo. O poeta apaixonado, por vezes dramático, freqüentemente mórbido de antes, vai se converter no letrista extremamente simples, popular e musical, de depois, sobretudo a partir da parceria com Baden Powell. Nesse sentido, dois CDs são exemplares: Vinicius & Odette Lara ouvir 30s, arranjos de Moacir Santos (Elenco, 1963), e Os Afro-sambas de Baden & Vinicius (Forma, 1966). Apesar de tecnicamente mal gravado e dos inadequados arranjos de Guerra Peixe, o LP com Baden (que só fora lançado em CD no Japão) acabou de converter Vinicius no branco mais preto do Brasil.

O Vinicius do cinema e da TV está em quatro LPs que também só agora têm edição em CD: as trilhas do filme Garota de Ipanema (Philips, 1967) e das novelas Minha Filha Gabriela (Polydor, 1972), O Bem-amado (Som Livre, 1973) e Fogo Sobre Terra (Som livre, 1974). O premiado filme de Marcel Camus, Orfeu do Carnaval, que Vinicius detestava, sendo os direitos da Verve, ficou de fora.

O teatro está admiravelmente representado, apesar da ausência de Pobre Menina Rica ouvir 30s (um dos exemplares da Columbia não liberados pela Sony). Mas, para compensar, há duas preciosidades. A primeira, Orfeu da Conceição, o musical que marcou há 45 anos o início da parceria Tom & Vinicius. Um mês depois da estréia no Municipal, foi lançado o LP de dez polegadas (Odeon, 1956) com a abertura sinfônica de quase sete minutos, o Monólogo de Orfeu na voz de Vinicius com fundo musical pela flauta de Copinha e violão de Luís Bonfá (fundo este que, mais tarde, letrado por Vinicius, viraria a antológica Modinha 30'' excerpts) e mais cinco canções, entre elas Se Todos Fossem Iguais a Você, cantadas não por Haroldo Costa, o Orfeu original, mas por Roberto Paiva. É disco não apenas histórico, mas fundamental. As canções já tinham saído no meio de um CD da Revivendo, mas o monólogo e a abertura (na qual já se antecipa o Tom da maturidade) ficaram restrito àquele LP de dez polegadas.

A outra preciosidade é um dos achados de Fróes: Jesus Cristo Superstar. Exatamente: o musical de Andrew Lloyd Webber traduzido por Vinicius de Moraes. Foi encenado em São Paulo em 1972 e o elenco original o gravou com grande orquestra, mas quem sabe do LP? Fróes achou o master nos depósitos da Universal, sem indicação precisa sobre se teria sido ou não editado comercialmente. Nomes dos cantores e do arranjador (todos excelentes) se perderam, o que torna perdoável, aqui, o pecado da omissão cometido em outros momentos da coleção. Completa o bloco teatral Deus Lhe Pague (Odeon, 1976), a peça de Joracy Camargo transformada por Millôr Fernandes (texto), Edu Lobo (música) e Vinicius (letra) num musical.

Toquinho tem papel reavaliado
Quase tudo que Toquinho e Vinicius gravaram juntos está na caixa. É excelente oportunidade para que se reavalie o que o compositor representou nos últimos anos de vida do poeta. Não é verdade, como já assinalou um crítico, que a obra dos dois é pura homeopatia: não faz mal nem bem.

Toquinho injetou ânimo num Vinicius que começava a se sentir fora de moda, abandonado mesmo por parceiros e admiradores. Foi graças a essa injeção que, aos 56 anos, par constante com Toquinho, ele se reencontrou com o público jovem, em shows universitários, e com o sucesso, numa série de discos: Toquinho & Vinicius (RGE, 1971), Vinicius & Toquinho (Philips, 1974), Vinicius & Toquinho (Philips, 1975), O poeta e o Violão ouvir 30s (RGE, 1975), Dez Anos de Toquinho & Vinicius ouvir 30s (Philips, 1979), Toquinho & Vinicius: Um Pouco de Ilusão (Ariola, 1980) - todos na caixa. No último, Toquinho dubla a própria voz em algumas faixas, fazendo-a soar como a de Vinicius, já muito doente e sem condições de ir a estúdio para cumprir contrato com a nova gravadora.

O parceiro dos últimos dez anos, com o qual Vinicius comporia muito (incluindo Regra Três, Samba da Volta, Testamento, Tarde em Itapoã, A Vida Tem Sempre Razão), dividiria espaço com artistas convidados pelos dois em shows e discos. Incluídos entre os 27 estão, Saravá, Vinicius ouvir 30s, com o Quarteto em Cy, gravado ao vivo em São Paulo (Trova, 1974); Tom, Vinicius, Toquinho e Miúcha, gravado ao vivo no Canecão (Som Livre, 1977); e Como Dizia o Poeta, com Marília Medalha (RGE, 1971). Marília aparece sem Toquinho em outro, A Canção e a Voz de Marília Medalha na Poesia de Vinicius de Moraes (RGE, 1972), que no entanto vale menos por ela, tanto a compositora como a cantora, do que por Vinicius blueseando Mister Toquinho em inglês e, principalmente, pelas orquestrações de Edu Lobo e Chiquinho de Moraes, cujos nomes são lamentavelmente omitidos na ficha técnica.

Os dois últimos CDs da coleção, Lances de Vinicius, volumes 1 e 2, reúnem faixas só lançadas em compacto e raridades várias, inclusive gravações caseiras em que se ouve Tom Jobim cantarolando esboços do que um dia seriam Meditação e Canção em Modo Menor. Além de Pobre Menina Rica, não estão na caixa - e poderiam estar, não fossem os problemas de licenciamento - mais de uma dezenas de LPs. Entre eles, a lamentar principalmente a ausência de Brasília: Sinfonia da Alvorada (Columbia, 1961), com Vinicius dizendo seu texto e Tom regendo uma orquestra sinfônica (alguns temas, como O Homem, ele os retomaria anos depois). Enfim, material de sobra para um Como Dizia o Poeta, volume 2.