Portelenses ilustres em celebração do samba
Discos de Wilson Moreira, Seu Jair do Cavaquinho e Argemiro Patrocínio reafirmam a força dos compositores da Portela
Marco Antonio Barbosa
16/05/2002
A Portela não se entrega, muito menos seus integrantes. Levantando ainda mais alto a bandeira da tradição do samba carioca, as últimas semanas testemunharam o lançamento de três discos de portelenses ilustríssimos, que juntos somam 225 anos de dedicação ao bom batuque - Jair do Cavaquinho, Argemiro Patrocínio e Wilson Moreira. Trata-se de um trio de discos que não apenas celebra a melhor das linhagens de nosso samba, mas que também, em maior ou menor conta, trata de corrigir injustiças históricas cometidas pelo mercado. Jair e Argemiro, veteraníssimos e membros da Velha Guarda da Portela, nunca haviam gravado álbuns individuais. Wilson, reverenciado como sofisticado estilista do samba, atualmente é mais conhecido no Japão do que no Brasil. Seu Jair do Cavaquinho e Argemiro Patrocínio são como se chamam, simplesmente, os discos da dupla da Velha Guarda, lançados pelo selo Phonomotor e distribuídos pela EMI. Wilson Moreira lança seu Entidades I pelo Rádio MEC.
A proeza de lançar a tardia estréia solo de Jair e Argemiro coube a Marisa Monte, mentora do selo Phonomotor e intimamente ligada à Portela (seu pai, Carlos Monte, passou pela diretoria da escola de samba). A dupla tinha participado do antológico Tudo Azul , CD da Velha Guarda da Portela produzido por Marisa em 1998. "Para mim foi incrível descobrir que esses dois tinham uma obra tão rica e que ficou sem registro por tanto tempo", afirmou Marisa Monte em evento realizado no Rio de Janeiro para lançar os CDs. "Acho que, como eu, vai haver um enorme número de pessoas interessadas e dispostas a se encantar com a música dos dois." Ambos os sambistas estão exultantes com os lançamentos. "O coração está batendo como o de um garoto", diz Argemiro. "Tenho até medo da emoção ser grande demais e eu bambear. Marisa (Monte) foi muito legal, me deu a chance de aparecer no final da carreira." Jair compartilha do entusiasmo e não esconde o quanto aguardou este momento: "Não guardo mágoa de nada. Mas todo compositor tem esse sonho de fazer um disquinho com suas próprias músicas, ver tudo organizadinho. Agora chegou minha vez." A estréia da dupla foi tratada com gala pela própria EMI, que, animada com as boas vendas de Tudo Azul (mais de 40 mil CDs), providenciou até site na Internet para os sambistas (www.jairdocavaquinho.com.br e www.argemiropatrocinio.com.br).
As trajetórias e os discos de Jair e Argemiro não são exatamente paralelas. Atualmente o mais idoso membro da Velha Guarda da Portela (há controvérsias sobre sua idade; nem ele sabe ao certo se tem 80 ou 82 anos), Jair só veio integrar a turma de veteranos da escola a partir de 1996, após a morte de Manacéa. Passou os anos 60 integrando conjuntos hoje lendários como o Rosa de Ouro, A Voz do Morro e Os Cinco Crioulos. Intercalou, por 40 anos, as atividades musicais com o dia-a-dia de servente de escritório. Tem composições na praça - às vezes como Jair da Costa, seu nome verdadeiro - desde 1958, gravadas por gente como Elizete Cardoso, Jamelão e Nara Leão. Seu disco solo começou a ser gerado em 1999, em parceria com o grupo Semente e sob a produção de Pedro Amorim, e seria lançado pela Acari Records. Depois de pronto, o álbum foi comprado pela Phonomotor e "empacotado", literalmente, junto com o de Argemiro (os dois CDs estão sendo vendidos em uma única caixa, ao preço de R$ 48).
O disco de Argemiro foi produzido pela própria Marisa Monte, depois que a cantora percebeu que o sambista se destacava naturalmente entre os componentes da Velha Guarda. Integrante da bateria da Portela desde muito jovem, só começou a compor em 1976, aos 56 anos ("Antes eu fazia samba só por fazer", conta). Integra a Velha Guarda desde 1976 e teve poucas músicas gravadas, entre elas o sucesso A Chuva Cai, celebrizada na voz de Beth Carvalho em 1978 - mas ao entrar em estúdio para gravar, dispunha de um "baú" com mais de cem sambas prontos.
Os álbuns diferem no conceito. O de Argemiro traz convidados especiais de luxo (além da própria Marisa, há Zeca Pagodinho, Moreno Veloso, Teresa Cristina e a presença de Marcelo D2, remixando a faixa-bônus Vou Me Embora Pra Bem Longe). Há um certo tom de modernidade e sofisticação nos arranjos de Paulão 7 Cordas e Mauro Diniz. Além disso, o disco investe nas canções mais populares do veterano, como Solidão e Nuvem que Passou. "Foi isso aí mesmo, preferi investir nos sucessos", confirma Argemiro. O de Jair é reverente à tradição, trazendo apenas o grupo Semente - destaque da nova geração de revivalistas cariocas do samba - e concentra-se em músicas inéditas. "Se eu só botasse as que foram sucesso, como Vou Partir (gravada por Elizete) ou Pecadora (registrada por Nara Leão), iria ficar uma coisa esquisita - como um disco de quem perdeu a inspiração. Eu não perdi." Só três canções (Atraso em Meu Caminho, Cavaquinho Feliz e Espetáculo Deslumbrante) tinham sido gravadas anteriormente.
O primeiro de vários Entidades
O jovem (apenas 66 anos) Wilson Moreira, também portelense, definitivamente não se encontra na mesma situação profissional de Jair e Argemiro. O compositor lança agora Entidades I, pelo selo Rádio MEC, e como o próprio título do álbum preconiza, não vai parar por aí. Distribuído pela Rob Digital, o álbum pode ser comprado no site www.robdigital.com.br.A proposta de Wilson foi traçar um panorama dos diversos ritmos - com ênfase na influência da cultura afro - que compõem o samba. "Veja bem, são ritmos que tem muito a ver comigo, com a minha história. Eu gosto muito e os componho com alma. Meus avós e meus tios foram jongueiros. Cantavam calangos, tocavam sanfona de oito baixos. Cresci ouvindo tudo isso. É claro que eles me influenciaram", fala Wilson.
O nome do disco também pode ser explicado pela diversidade de estilos e climas que "baixam" sobre a inspiração de Wilson. "Tem sambas de quadra, lundus, samba de terreiro, de raiz. Tem muito batuque, canção rural e partido-alto. Para mim, está muito bom", diz o compositor. O calango dá as caras em Forró no Cafundó e Ao Jeito da Roça; o jongo, herdado de sua família chega em Jongueiro Cumba; a congada é o ritmo de Congada pra Sinhô Rei. O lado urbano, do sambista sofisticado, chega em pérolas como A Brilhante Velha Guarda e Pregoeiro do Amor.
Ao mesmo tempo em que as composições passeiam por vários ritmos, as temáticas dos versos viajam livremente. Reverências ancestrais (Noites de Luanda), conscientização e mensagens politicas (Procure ser Gente, Além do Centenário) e puro bom humor (Põe Dendê e Tempero) figuram nas letras, quase todas escritas pelo próprio Wilson. Apenas Jongueiro Cumba, feita com Nei Lopes, e Congada Pra Sinhô Rei, inusitada dobradinha com o ator Grande Otelo, tiveram participações alheias. "A Clementina de Jesus estava para gravar um disco e me encomendou uma música. Um amigo disse que o Grande Otelo queria ser meu parceiro, daí fiz a música a partir de um refrão dele. Foi em 1970", conta Wilson.
Notável é perceber que das 14 faixas do álbum (produzido, mais uma vez, por Paulão 7 Cordas) apenas uma, Oloan, já havia sido gravada. O resto do repertório mistura canções guardadas por Wilson há anos com outras preparadas especialmente para o disco. Feras como Henrique Cazes, Mauro Diniz, Maurício Horta e a onipresente Teresa Cristina pontificam no acompanhamento. Conforme o título do disco sugere, este é apenas o primeiro de uma série de álbuns que vão desvendar as raízes afro de nosso samba. "É importante porque nos faz lembrar de nossos ancestrais, das nossas origens, quando nossos avós, negros e brancos, dançavam, se divertiam nos longínquos anos que se foram", acredita o compositor. "Você ainda encontra toda essa tradição viva no interior de grandes cidades, nas fazendas, espalhada pelo interior do Brasil."
A proeza de lançar a tardia estréia solo de Jair e Argemiro coube a Marisa Monte, mentora do selo Phonomotor e intimamente ligada à Portela (seu pai, Carlos Monte, passou pela diretoria da escola de samba). A dupla tinha participado do antológico Tudo Azul , CD da Velha Guarda da Portela produzido por Marisa em 1998. "Para mim foi incrível descobrir que esses dois tinham uma obra tão rica e que ficou sem registro por tanto tempo", afirmou Marisa Monte em evento realizado no Rio de Janeiro para lançar os CDs. "Acho que, como eu, vai haver um enorme número de pessoas interessadas e dispostas a se encantar com a música dos dois." Ambos os sambistas estão exultantes com os lançamentos. "O coração está batendo como o de um garoto", diz Argemiro. "Tenho até medo da emoção ser grande demais e eu bambear. Marisa (Monte) foi muito legal, me deu a chance de aparecer no final da carreira." Jair compartilha do entusiasmo e não esconde o quanto aguardou este momento: "Não guardo mágoa de nada. Mas todo compositor tem esse sonho de fazer um disquinho com suas próprias músicas, ver tudo organizadinho. Agora chegou minha vez." A estréia da dupla foi tratada com gala pela própria EMI, que, animada com as boas vendas de Tudo Azul (mais de 40 mil CDs), providenciou até site na Internet para os sambistas (www.jairdocavaquinho.com.br e www.argemiropatrocinio.com.br).
As trajetórias e os discos de Jair e Argemiro não são exatamente paralelas. Atualmente o mais idoso membro da Velha Guarda da Portela (há controvérsias sobre sua idade; nem ele sabe ao certo se tem 80 ou 82 anos), Jair só veio integrar a turma de veteranos da escola a partir de 1996, após a morte de Manacéa. Passou os anos 60 integrando conjuntos hoje lendários como o Rosa de Ouro, A Voz do Morro e Os Cinco Crioulos. Intercalou, por 40 anos, as atividades musicais com o dia-a-dia de servente de escritório. Tem composições na praça - às vezes como Jair da Costa, seu nome verdadeiro - desde 1958, gravadas por gente como Elizete Cardoso, Jamelão e Nara Leão. Seu disco solo começou a ser gerado em 1999, em parceria com o grupo Semente e sob a produção de Pedro Amorim, e seria lançado pela Acari Records. Depois de pronto, o álbum foi comprado pela Phonomotor e "empacotado", literalmente, junto com o de Argemiro (os dois CDs estão sendo vendidos em uma única caixa, ao preço de R$ 48).
O disco de Argemiro foi produzido pela própria Marisa Monte, depois que a cantora percebeu que o sambista se destacava naturalmente entre os componentes da Velha Guarda. Integrante da bateria da Portela desde muito jovem, só começou a compor em 1976, aos 56 anos ("Antes eu fazia samba só por fazer", conta). Integra a Velha Guarda desde 1976 e teve poucas músicas gravadas, entre elas o sucesso A Chuva Cai, celebrizada na voz de Beth Carvalho em 1978 - mas ao entrar em estúdio para gravar, dispunha de um "baú" com mais de cem sambas prontos.
Os álbuns diferem no conceito. O de Argemiro traz convidados especiais de luxo (além da própria Marisa, há Zeca Pagodinho, Moreno Veloso, Teresa Cristina e a presença de Marcelo D2, remixando a faixa-bônus Vou Me Embora Pra Bem Longe). Há um certo tom de modernidade e sofisticação nos arranjos de Paulão 7 Cordas e Mauro Diniz. Além disso, o disco investe nas canções mais populares do veterano, como Solidão e Nuvem que Passou. "Foi isso aí mesmo, preferi investir nos sucessos", confirma Argemiro. O de Jair é reverente à tradição, trazendo apenas o grupo Semente - destaque da nova geração de revivalistas cariocas do samba - e concentra-se em músicas inéditas. "Se eu só botasse as que foram sucesso, como Vou Partir (gravada por Elizete) ou Pecadora (registrada por Nara Leão), iria ficar uma coisa esquisita - como um disco de quem perdeu a inspiração. Eu não perdi." Só três canções (Atraso em Meu Caminho, Cavaquinho Feliz e Espetáculo Deslumbrante) tinham sido gravadas anteriormente.
O primeiro de vários Entidades
O jovem (apenas 66 anos) Wilson Moreira, também portelense, definitivamente não se encontra na mesma situação profissional de Jair e Argemiro. O compositor lança agora Entidades I, pelo selo Rádio MEC, e como o próprio título do álbum preconiza, não vai parar por aí. Distribuído pela Rob Digital, o álbum pode ser comprado no site www.robdigital.com.br.A proposta de Wilson foi traçar um panorama dos diversos ritmos - com ênfase na influência da cultura afro - que compõem o samba. "Veja bem, são ritmos que tem muito a ver comigo, com a minha história. Eu gosto muito e os componho com alma. Meus avós e meus tios foram jongueiros. Cantavam calangos, tocavam sanfona de oito baixos. Cresci ouvindo tudo isso. É claro que eles me influenciaram", fala Wilson.
O nome do disco também pode ser explicado pela diversidade de estilos e climas que "baixam" sobre a inspiração de Wilson. "Tem sambas de quadra, lundus, samba de terreiro, de raiz. Tem muito batuque, canção rural e partido-alto. Para mim, está muito bom", diz o compositor. O calango dá as caras em Forró no Cafundó e Ao Jeito da Roça; o jongo, herdado de sua família chega em Jongueiro Cumba; a congada é o ritmo de Congada pra Sinhô Rei. O lado urbano, do sambista sofisticado, chega em pérolas como A Brilhante Velha Guarda e Pregoeiro do Amor.
Ao mesmo tempo em que as composições passeiam por vários ritmos, as temáticas dos versos viajam livremente. Reverências ancestrais (Noites de Luanda), conscientização e mensagens politicas (Procure ser Gente, Além do Centenário) e puro bom humor (Põe Dendê e Tempero) figuram nas letras, quase todas escritas pelo próprio Wilson. Apenas Jongueiro Cumba, feita com Nei Lopes, e Congada Pra Sinhô Rei, inusitada dobradinha com o ator Grande Otelo, tiveram participações alheias. "A Clementina de Jesus estava para gravar um disco e me encomendou uma música. Um amigo disse que o Grande Otelo queria ser meu parceiro, daí fiz a música a partir de um refrão dele. Foi em 1970", conta Wilson.
Notável é perceber que das 14 faixas do álbum (produzido, mais uma vez, por Paulão 7 Cordas) apenas uma, Oloan, já havia sido gravada. O resto do repertório mistura canções guardadas por Wilson há anos com outras preparadas especialmente para o disco. Feras como Henrique Cazes, Mauro Diniz, Maurício Horta e a onipresente Teresa Cristina pontificam no acompanhamento. Conforme o título do disco sugere, este é apenas o primeiro de uma série de álbuns que vão desvendar as raízes afro de nosso samba. "É importante porque nos faz lembrar de nossos ancestrais, das nossas origens, quando nossos avós, negros e brancos, dançavam, se divertiam nos longínquos anos que se foram", acredita o compositor. "Você ainda encontra toda essa tradição viva no interior de grandes cidades, nas fazendas, espalhada pelo interior do Brasil."