Prêmio Hutus festeja os melhores do rap

MV Bill levou mais prêmios na edição inaugural do primeiro evento dedicado à celebração da cultura negra e, em especial, do hip hop

Silvia D
15/11/2000
A cidade do Rio de Janeiro teve o privilégio de sediar a cerimônia de entrega dos prêmios Hutus, exclusivamente dedicado ao rap nacional, na noite de terça-feira. A chuva insistente que caía desde a tarde atrasou em duas horas o início da festa, mas não tirou o brilho que o evento merecia e teve. O tradicional Teatro Carlos Gomes, no centro da cidade, se iluminou com holofotes de TV apontados para as estrelas do rap e da cultura negra nacional.

Algumas das categorias contempladas foram as de Álbum do Ano, Revelação, DJ de Show, Veículo de Comunicação, Grupo Feminino, Personalidade do Hip Hop, Produtor Musical e Gravadora ou Selo. Esses prêmios foram votados por autoridades do rap (DJs, produtores, artistas) de 13 estados brasileiros. Um júri para Vídeoclipe do Ano foi recrutado à parte e composto por ativistas da cultura nacional via cinema, caso dos diretores Kátia Lund, Beto Brant e Cacá Diegues. O público participou elegendo seus preferidos nas categorias Vídeoclipe do Ano, Melhor Grupo de Rap e Música do Ano. À cerimônia de premiação, seguiu-se uma grande festa na Fundição Progresso, lar da cultura dita alternativa na cidade maravilhosa.

Os prêmios
A abertura ficou por conta do DJ Will, 13 anos e filho do produtor KL Jay, dos Racionais MCs, que ganhou a audiência com ousadas e seguras mixagens. Pouco depois, o grupo gaúcho Da Guedes tratou de esquentar a numerosa platéia que chegava pingando ao teatro. No palco, decorado com centenas de discos de vinil formando uma cortina gigante, a atriz Camila Pitanga e o locutor Paulo Brown se saíram bem como MCs (mestres de cerimônia), driblando com competência pequenos percalços – as vinhetas que traziam os nomes dos concorrentes invariavelmente demoravam a entrar no telão – e improvisando, vez por outra, um beatbox, técnica em que se faz uma base rítmica com a boca, para que outro possa “versar” em cima.

William Santiago, produtor da Zimbabwe, foi chamado para entregar o prêmio de Melhor Produtor Musical ao DJ Raffa, de Brasília, um dos mais requisitados atualmente. Da Gama e Lazão, do Cidade Negra, se enrolaram divertidamente com o texto que antecedeu a entrega do troféu para a Melhor Gravadora ou Selo, que foi a Trama. Marcelo D2, condenado a ouvir insinuações engraçadinhas sobre maconha de qualquer platéia, entregou o prêmio de Melhor Veículo de Comunicação à Revista Rap Brasil, produzida em São Paulo. O grupo candango GOG tomou o palco, então, levando CPI da Favela sobre uma base que se iniciava nos primeiros acordes do violão de Jorge Ben em Fio Maravilha – e a temperatura começou a subir.

Ao agradecer pelo prêmio seguinte, de Melhor DJ de Shows, o eleito DJ Hum (que faz dupla com o rapper Thaíde) foi ao mesmo tempo lacônico e precisamente descritivo com relação ao rap no Brasil: “Em 20 anos de trabalho com música, esta é a primeira vez em que ganho um prêmio.” Essa foi a deixa para a espetacular entrada do veterano cantor de funk Gerson King Combo. Ovacionado e muito bem disposto, ele agradeceu ao movimento hip hop por tê-lo resgatado, abençoando a todos. Gerson entregou o prêmio de Personalidade Hip Hop do ano a KL Jay, que vem saboreando o sucesso do trabalho duro desenvolvido por sua produtora, 4P, em sociedade com o rapper Xis. Deixou a modéstia do lado de fora e declarou: “É o Pelé no futebol, o Luíz Gonzaga no baião, o Gerson no funk e eu no rap!” Ao que Gerson respondeu: “Assuma sua mente, brother!”

Os cariocas do Juízo Crítico ficaram com o prêmio para Melhor Demo, e então o palco foi tomado pela estrela que mais brilharia na noite: MV Bill. O auto-intitulado “traficante de informação”, além de poderosamente carismático, canta raps não muito velozes, e sua voz grave pode evocar uma impressão de lamento, ou de algum parentesco de sua música com o blues.

Dedicado aos detratores
Concorrendo com pesos pesadíssimos do rap nacional como Xis e Thaíde & DJ Hum, MV Bill levou a melhor, ficando com o prêmio seguinte, o Melhor Álbum do Ano por Traficando Informação, distribuído pela Natasha Records. Ele recebeu sua premiação pelas mãos do rapper X, ex-integrante do Câmbio Negro (de Brasília). Carinhosamente, o Mensageiro da Verdade (suas iniciais, MV) inovou nas dedicatórias: “Esse prêmio vai para todos os que sempre desacreditaram no meu trabalho, que me disseram que, como preto, eu não chegaria a lugar nenhum; e aos meus detratores.” Ele acaba de ser acusado de fazer apologia ao crime por causa do vídeo de sua canção, Soldado do Morro.

A vereadora do PT pelo Rio de Janeiro, Jurema Batista, entregou ao grupo paulista Visão de Rua o troféu de Melhor Grupo Feminino. Elas lançam seu primeiro disco na próxima segunda-feira, depois de dez anos de estrada. A Revelação do Ano, apresentada pelo sambista Dudu Nobre, foi muito comemorada pelos vencedores, o grupo 509-E, formado por internos do presídio do Carandiru, em São Paulo, que filmavam tudo e todos com uma câmera de vídeo.

Xis, que contra todas as expectativas saiu de mãos abanando, deu uma mostra do fogo que iria atear, horas depois, na Fundição Progresso. Interpretou A Fuga, que tem letra do ex-traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, e o público cantou junto animadamente. Ice Blue, dos Racionais MCs, chamou MV Bill novamente ao palco, desta vez, para receber o prêmio de Melhor Música do Ano por Soldado do Morro. Bill aproveitou para concluir seu discurso: “Não precisa esperar o domingo à noite para viver no limite. Na favela é assim sempre.”

Foi então que entrou em cena o senador paulista Eduardo Suplicy. Acostumado aos longos e morosos discursos proferidos em bancadas congressistas, o marido da prefeita de São Paulo divagou sobre temporadas passadas por seu filho Supla em bairros de porto-riquenhos em Nova Iorque (!) e quebrou o ritmo da cerimônia, até que finalmente entregou o Hutus de Melhor Grupo de Rap para Thaíde & DJ Hum. E eles mesmos fecharam a noite, apresentando-se em grande estilo e com uma observação pertinente de Thaíde: “Vou olhar os selos desses discos todos, escolher alguns, porque é um pecado deixá-los assim”, brincou, referindo-se ao cenário.

Fundição Progresso, a missão
Os que estavam no Teatro Carlos Gomes só conseguiram chegar à Fundição por volta de uma da madrugada de quarta-feira. Ao chegar, entretanto, não se poderia imaginar uma atmosfera mais acolhedora. Rodas de break surgiam espontaneamente aqui e ali, e o ícone do breakdance, o pernambucano radicado em São Paulo Nelson Triunfo, podia ser visto bailando enquanto o púbico entrava aos poucos e lotava o lugar. Com o som na medida certa e muita tranqüilidade no ambiente, os shows começaram perto de duas da manhã, com o grupo paulistano DMN. Quando eles dispararam a introdução, utilizando o Monólogo ao Pé do Ouvido de Chico Science & Nação Zumbi, o chão tremeu. Infelizmente, o resto do set não foi tão empolgante quanto prometia.

Mas quem apareceu depois deles foi Xis, que com o repertório de seu disco, Seja Como For, “esquentou a chapa”, como dizem os “manos” do hip hop. E já chegou dominando. Com direito a efeitos pirotécnicos, o rapper da Zona Leste da cidade de São Paulo foi acolhido pelos fãs cariocas e pôde constatar que eles aprenderam suas letras direitinho. As músicas de seu CD funcionam muito bem ao vivo, com a ajuda do avassalador DJ King e de mais uma posse de vocalistas, cinco ao todo. Deixou o público extasiado e pronto para MV Bill. O rapper da Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro, não deixou a peteca cair e satisfez a sede de seus admiradores, com a ajuda de um percussionista e da rapper K-milla, sua irmã. Os shows continuaram madrugada adentro, sacramentando o poder do rap brasileiro como forma de arte, expressão e produto de consumo, e embalando a chegada do feriado dedicado ao maior mito negro do país, Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro.

Idealizado pelo produtor Celso Athayde (da Zâmbia Fonográfica), o Prêmio Hutus veio como reflexo da evolução do rap e da cultura hip hop (que engloba a dança break e o grafitti, além da música) no Brasil: nos últimos anos, a proliferação de bons artistas do gênero resultou em um considerável aumento da produção de CDs gravados e distribuídos de forma independente por todo o país – o rap tomou ares de indústria. No rastro dos discos, vieram revistas, pequenas gravadoras e selos, produtores de cinema e vídeo e muita ação social – afinal, as letras do estilo “ritmo e poesia” (do inglês rap, ou rhythm and poetry) versam, em sua maioria, sobre exclusão e desigualdade, auto-estima e união.